sábado, 28 de maio de 2016

Não furtarás!

Deuteronômio 5-19. Um mandamento bíblico. Estava escrito na parte interna da caneta Bic. No fim da citação constava o nome da proprietária. Naquele instante, como um flash, um resgate instantâneo da memória, de pronto lembrei que pegara emprestado e não devolvido. Infelizmente um hábito de anos de hospital: esquecer de devolver a caneta alheia. A devolução acontecia quando o empréstimo se fazia sem a tampa. No restante das vezes guardava em bolso de camisa com um movimento quase que automático – algo que atribuía à necessidade de atendimento de muitos pacientes. Até então muitas justificativas para o acúmulo de canetas em meu carro. Pela primeira vez a consciência pesou. Uma pequena frase me tocara. Despertar um sentimento de culpa. No momento da leitura estava em frente a um paciente, escrevia uma receita médica e orientava sobre hábitos saudáveis –  principalmente, controle do peso. Devia evitar os pequenos furtos noturnos em geladeiras. Quando me dei conta, falava dos pequenos furtos, como se eu também, não os cometesse. Pensei em outro ensinamento bíblico: “Não tenham na bolsa dois padrões para o mesmo peso, um maior e outro menor. Tenham pesos e medidas exatos e honestos...”. Após a saída do paciente, com o consultório vazio, pensei nas muitas justificativas para os pequenos erros. Resolvi devolver aquilo que não me pertencia. Enquanto dirigia, lembrei a história de David e Betsabá, o profeta Natã alertando David sobre os erros. Erros com o soldado Urias, com os vizinhos... Os erros que David não queria enxergar. O pensador brasileiro, Eduardo Gianetti, diz: “Ninguém é bom juiz em causa própria. A capacidade humana de julgar com isenção tende a declinar, na medida em que nos aproximamos de tudo aquilo que nos afeta e interessa de perto.” Poderia ser assim: “Se Deus segurasse em sua mão direita toda a verdade e em sua esquerda a perene busca pela verdade, e dissesse: Escolha! Humildemente escolheria a mão esquerda e diria: Daí-me senhor! A verdade pura é para vós somente!”. Talvez, por isso, pela fragilidade humana, para o convívio social, necessitamos da tolerância zero, uma maneira de agir, que toma conta de algumas cidades mundo afora. Isto é, todo delito, por menor que seja, deve ser punido ou avaliado. Voltar aos pesos e medidas exatos e honestos.
Por fim, me encaminhei ao hospital, devolveria ao dono aquilo que não me pertencia. Algo simbólico. Um valor material mínimo, mas de grande valor comportamental. Antes, porém, na Rua Moreira, necessitei de cuidados dentários. Na cadeira do dentista, enquanto aguardava o procedimento, observei pela janela, na sacada do consultório, um beija-flor, ele roubava a seiva da orquídea. Pensei em condenar o roubo, mas a beleza das cores do colibri, seu malabarismo junto à flor, o momento da natureza me fez esquecer a caneta e o meu próprio delito. Retornei ao trabalho e deixei a entrega para outro dia.

Maio, 2016

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