sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Balzaquianas

  
A apaixonante vida do francês Honoré de Balzac (1799–1850) levou à criação da Comédia Humana e sua fama em toda Europa. Apesar de vibrante, foi uma vida de relações conflituosas: com a mãe e com outros escritores da época como Victor Hugo e Eugéne Sue. Seus amores e os vários escândalos são mostrados pelo ator Gérard Depardieu em filmes produzidos pela Versátil e a Beta Film. Um “glutão”, vibrante com as coisas belas da vida. Um apaixonado pela mulher da meia idade. Após o filme, lembrei de uma balzaquiana atual.
            Encontrei, no corredor do hospital, uma mulher radiante de alegria. Demonstrava em gestos e expressões faciais toda sua felicidade. Um momento único, estranho até certo ponto, pelo lugar em que se encontrava. Encontrava-se em frente à sala de parto, normalmente um local carregado de dor das parturientes. Pela expressão assemelhava-se a uma menina em um jogo de amarelinhas, saltitando pelas linhas imaginárias, em busca da pequena pedra entre os espaços vazios no chão do quintal de uma casa antiga dos nossos avós.
            Era assim que se apresentava. Assemelhava-se à uma menina adolescente. Mas, não, não era uma menina, e sim, uma mulher em meia idade. Em sua mão uma folha de papel. Imaginei um resultado de exame laboratorial, o qual foi confirmado logo depois. Por estar junto ao serviço de ginecologia e obstetrícia, e pela felicidade que demonstrava, pensei em um teste de gravidez. Para minha surpresa era resultado de um exame, mas totalmente contrário ao imaginado, tratava-se de dosagens hormonais e pelo achado não poderia mais engravidar, encontrava-se hormonalmente na menopausa, disse. Apesar do climatério, encontrava-se alegre. O tempo, inimigo da vida humana, estava dominado. Não temia o passar dos anos. Ele criara um estado interessante, um estágio de amadurecimento. A mulher encontrava-se livre para a reposição das energias e seguiria sem medos. Questionei a alegria, pois, não era um fato comum e frequentemente observa-se certo desânimo em parte das mulheres. Sentia-se diferente, foi o que me disse. Apenas diferente. Fisicamente bem, procurara preparar-se para aquilo que era inevitável, sua queda hormonal, e para tanto bastava a reposição. Pela expressão da mulher que encontrei no corredor, pelo esbanjamento de alegria, pela confiança, não tive dúvidas, as balzaquianas mudaram, ganharam uma ou duas décadas e, no futuro, bem mais. Um segredo a se desvendar, o tesouro da vida na alegria.
            A expressão observada no corredor do hospital pode vir a dominar os homens. No embate biológico e cronológico os homens já estão perdendo. O que está levando os homens a perderem para o dito sexo frágil? As mulheres tomam conta das finanças, dos filhos e da casa. Com o tempo não precisarão dos homens, seremos descartáveis.
            Pela segurança demonstrada por aquela mulher, mesmo com a baixa hormonal, corri e procurei fortalecer um músculo que a testosterona lentamente não mais consegue manter. Talvez seja melhor assim, menos músculos e mais sentimentos. Quem sabe a reposição do hormônio seja substituída, no futuro, por uma pitada de alegria. Ou mesmo, seja esta a explicação funcional e biológica do bem estar. Bem como, a solução para se evitar o envelhecimento celular e o segredo da sua conservação.


Sergio Damião Sant´Anna Moraes

COGITO, ERGO SUM



“Penso, logo existo.” Tradução latina da afirmação em que o filósofo francês René Descartes (Discurso da razão, 1637) reconhecia a primeira verdade duma doutrina construída sobre a evidência e a razão. Com o tempo, na discussão do que nos faz humanos, foi acrescida, à assertiva cartesiana, a memória. No livro de Paulo Rónai, Não perca o seu Latim, Bazar do Tempo, 2017, encontramos a expressão: “Conditio Sine Quã Non – condição sem a qual não...”, termo com que se designa, em Direito, uma condição essencial à realização de uma transação, de um ato jurídico. Citam-se muitas vezes apenas as três últimas palavras. Sem a memória, morremos historicamente. Permanece o corpo físico, precisamos dos outros para que se lembrem da nossa existência. Sem memória não se faz uma rua, cidade, instituição, pessoa, povo... Sem memória não se faz um país! Sem memória nunca existiremos de fato! Sem memória... O brasileiro parece um povo sem memória. Na política mais ainda. Esquece, a cada eleição, mesmo a de curto prazo, de lembrar-se dos corruptos, malfeitores, dos usurpadores do poder, dos destruidores de benefícios da coletividade. Esquece-se de cobrar as promessas políticas de gestores e legisladores. Permanece sem memória a cada discurso renovado de velhas raposas eleitorais. Uma memória política desastrosa. Uma memória a ser construída.
Somos sem memória como povo e permanecemos desmemoriados no campo individual. Não nos lembramos de agradecer à natureza pelas coisas belas que vemos no nascer do dia e esquecemos-nos da preservação. Não nos lembramos de agradecer pela saúde que desfrutamos, não agradecemos pelas doenças que não adquirimos. Lembramos-nos de pedir ao criador, e a quem está próximo de nós, os bens que não possuímos.  Quando adquirimos algo, esquecemos-nos de doar parte do que recebemos. Vivemos assim, com a memória seletiva, lembramos o que nos interessa financeiramente. Perdemos a memória afetiva. Não valorizamos a memória de cidades, ruas, bairros... Esquecemos os que nos antecederam, esquecemos aqueles que construíram a estrutura que ora desfrutamos. A geração do presente esquece com rapidez os que existiram. Vivem do presente. Vivem sem memória. São os Zumbis do presente. Fabricam os Zumbis do futuro. Os políticos sem memória utilizam artifícios do presente, criam novos fatos e escondem o passado. Desvalorizam culturas e artes: músicas, artesanatos, danças, línguas... Para eles, quanto menos lembrarmos melhor.
Nos hospitais construímos a memória com os prontuários manuais e eletrônicos. Na Santa Casa de Cachoeiro, uma instituição centenária, das mais antigas do Espírito Santo, o Centro de Estudos “Dr. Edson Rebello Moreira” guarda a memória do hospital nas fotografias do Corpo Clínico, depoimentos e livros. O avanço técnico não pode ser separado das lembranças clínicas. O aprendizado, produto das relações interpessoais. deve ser valorizado. A harmonia deve prevalecer. Não agindo assim, corre-se o risco de desumanizar pessoas e instituições. No campo pessoal, buscamos a imortalidade. Algo impossível no mundo biológico. A certeza da morte nos persegue. Resta guardarmos a memória. Sem ela, seremos todos esquecidos.



Sergio Damião Santana Moraes

Stragalar




            Acho que já contei a história dos Linguarudos de Santo Antônio, bairro da nossa capital, onde nasci e cresci. Era um Clube de 25 homens, cada um representando o número do bicho do jogo homônimo e proibido. Reuniam-se nas manhãs de domingo, próximo à barbearia localizada no final do Cemitério Municipal, na subida do Santuário do santo casamenteiro. O nome não deixa dúvida em relação ao que faziam. A Assembléia servia para falarem mal da vida dos outros e deles mesmos. Divertiam-se com as histórias contadas durante o carteado e dominó, enquanto as crianças brincavam com a bola de vidro ou de couro. Nesse tempo, as mulheres preparavam o frango ao molho pardo com batata inglesa, bem como a macarronada. Não reclamavam. Era seu ofício, servir os linguarudos. No final do ano, um deles ganhava no jogo - dezena, centena, milhar ou no grupo. Pelo tamanho e duração da festa imaginava-se o valor arrecadado. No ano seguinte, após a entrega do troféu, uma língua esculpida em madeira, o vencedor era substituído por um novo membro, escolhido entre os novos que se destacava na arte da verve. Na verdade, um bom linguarudo. Durante o ano, riam do mau humor da anfitriã e da comida ruim servida. Com o Clube da Língua a tradição era mantida no bairro. Acho também que servia de proteção, uma maneira de saberem, em primeira mão, a notícia coloquial.
            No final da adolescência conheci na prainha de Vila Velha, onde a colonização do solo do Espírito Santo começou; onde temos a melhor vista do Convento da Penha; onde se localiza nossa primeira Igreja: do Rosário; onde os barcos deveriam atracar e zarpar para um passeio turístico pela baía de Vitória; onde o parque deveria estar mais bem cuidado, exatamente ali, em um belo boteco que além de abrigar os que gostam de “conversa fiada” e “causos”, também abriga o melhor da culinária capixaba: a moqueca e os frutos do mar. Ali as mulheres, antes submissas, se revoltaram e gritaram: “Este boteco é um verdadeiro estraga lar.” O dono, muito esperto, aproveitou e modernizou a palavra (antecipando a globalização) colocou o nome do estabelecimento: “Stragalar”. Mesmo com o boicote feminino, o local cresceu e se popularizou. É verdade que, o tempero local, no final, acabou conquistando a simpatia das revolucionárias. Ainda hoje é possível se encantar com o tempero e as boas histórias.
            Quando adulto e, de bem mais idade, em Cachoeiro, outro Clube conheci: Clube de Caminhadas. Um Clube de menos conversas, aberto a homens, mulheres e crianças. Um Clube para preservar o coração. O horário da partida para as trilhas e aventuras permite conhecer bares e boêmios do fim da madrugada e do nascer do sol. Não sei quanto às mulheres desses boêmios dos “pés sujos” e botequins. Mas as mulheres do Clube decididas são. E bem cedo estão de prontidão. As histórias dos bares dos pescadores de Marataízes que encontramos em fim de caminhada são semelhantes aos dos Linguarudos. O Stragalar deve ser diferente, pois, foi lá que Humberto Pitanga procurou sua amada Virginia, momentos antes de partir.

           
Sergio Damião Santana Moraes

Tic-tac


O relógio batia. Um pequeno relógio despertador encontrava-se junto aos meus ouvidos, na cabeceira da cama. Amanhecia, domingo de verão, dia depois de completar sessenta anos de idade. Entrava na sétima década de vida. O meu primeiro dia de uma nova década, meu primeiro dia como idoso pelas leis do meu país. Com o corpo estendido no colchão da cama, despertava. Ainda sonolento, permaneci com os olhos fechados. No apartamento, próximo ao mar, reinava o silêncio, ouvia: tic-tac, tic-tac, tic-tac; ao fundo, bem distante, o despejar das ondas do mar nas areias da praia (chuá). Algo inebriante. Domingo: nunca soube, permaneço na ignorância, se estou iniciando ou terminando a semana, não importa. O domingo foi feito para o descanso. Acho que, o criador do tic-tac, e das ondas do mar, decretou o descanso desde o início dos tempos. Bem antes dos calendários e dos homens decidirem pela contagem dos dias, horas, segundos... Bem antes dos homens contarem seu tempo de vida, bem antes de tudo. No domingo, minha mãe, em um dos seus rituais, cerimoniosamente, preparava nossa refeição: frango ao molho pardo com batata inglesa, arroz, feijão e macarronada. Acordava cedo, acordava com ela, com habilidade e respeito, após ferver a água, disponibilizar um prato com vinagre como recipiente para o sangue, depenava o frango. Eu ajudava na coleta do sangue, na retirada das penas e na separação das partes a serem consumidas. O restante ela fazia com maestria, ano após ano. Enquanto lembrava as coisas da minha mãe, esqueci-me dos sons. Logo, eles retornaram. Instigantes.
Ainda com os olhos fechados, na alternância do despertar e sonolência, o tic-tac anunciava um tempo passado. A cada batida, meu tempo de vida escorria; avançava a contagem do meu tempo de vida. Vivemos em contagem regressiva. Desde o nascimento, nossa primeira perda. Perdemos segurança do útero e placenta do ventre de nossas mães. Passamos a conviver com outras perdas da infância, adolescência e fase adulta. Entre perdas e ganhos; entre encontros e desencontros, alcançamos o equilíbrio e a maturidade do saber que a vida é feita de perdas. Morremos e nascemos nas perdas. A maturidade advém da superação das dores de coisas perdidas. Perdemos entes queridos, oportunidades de relacionamentos e trabalho, perdemos amores... Fazemos nossas escolhas. Silenciosamente o barulho do despejar das águas das ondas do mar nas areias da Praia de Itapoã, em Vila Velha, abafou o tic-tac. Quando criança, após acesso de tosse, comum para a idade, minha mãe, para minha tranquilidade, colocava os ouvidos em meu peito em busca de algum “chiado”. Dizia: ouvi seu relógio, ouvi seu coração, ouvi tic-tac. Quando cresci, como médico, ao auscultar outros corações, ouvi: tum-tá, tum-tá, tum-tá. Senti saudades do tic-tac que ela dizia ouvir.
No silêncio do apartamento, recusava abrir os olhos. Não queria voltar à realidade, pisar no chão. No primeiro dia da minha sétima década, senti medo. Deixava alternar os sons. Neles permaneciam os sonhos. Apesar de não ouvir as batidas do meu coração, podia sentir sua regularidade. Com as lembranças, sentia suas batidas aumentarem em frequência. Em seguida, o despertador tocou. O tic-tac deu lugar a um som alto e forte. Despertei para a vida. Levantei e iniciei meu retorno para Cachoeiro de Itapemirim.


Sergio Damião Santana Moraes

Violência


Violência é o mal do século XXI. Fruto de guerras e intolerâncias religiosas e étnicas. Algo impensado para o avanço tecnológico e econômico atual. No Brasil, e restante da América Latina, pela desigualdade social e déficit educacional, pela má distribuição das riquezas e renda, temos índices alarmantes de mortes traumáticas. Apesar das guerras no mundo, é no nosso Continente, mais ainda no Brasil, que tiros, facadas, acidentes automobilísticos e motociclísticos ceifam mais vidas. Um desastre social, mais que anunciado e previsto no século passado. Uma vergonha para um país que se encontra entre as 10 maiores economias do mundo. Não cuidamos da educação, da transparência de instituições e nos encontramos em estado desolador. Uma corrupção alastrada em todos os setores: esporte, político, financeiro... Um desalento. Uma tristeza enorme. A cada início de ano uma rebelião em nossos presídios; uma greve de policial militar. Algo absurdo, para um país minimamente civilizado. Um aviso à sociedade. Criamos um monstro em nossos presídios. Uma bomba relógio social produzida nos séculos anteriores.
Mas, no fim de dezembro, início de janeiro, eu vi ações da sociedade civil.  Da sociedade devemos esperar: cobranças, ações e vigilância. Eu vi duas escolas e uma ação de voluntariados. O melhor caminho: educação e ação voluntária. Em Vila Velha, município canela verde capixaba: Escola da Fundação Bradesco. Em Cachoeiro: Supercreche Ariete Moulim no bairro São Lucas e a Campanha da Visão para crianças em idade escolar do Núcleo Feminino da Unimed Sul Capixaba (capitaneada pela médica pediatra Fabiola).
A Escola da Fundação Bradesco é um modelo educacional da iniciativa privada. Uma Escola por estado, com exceção de São Paulo (duas). Alunos acompanhados por professores motivados e de altíssimo nível curricular. Com bom salário e incentivados. Prestação de assistência educacional integral e familiar. Integração de crianças e adolescentes de vários níveis sociais. Uma formação completa. Exemplo de uma boa gestão escolar.
Em Cachoeiro: a Supercreche Ariette Moulim, Escola municipal, uma homenagem à escritora e historiadora das mais respeitadas e queridas da nossa cidade. No bairro São Lucas, no alto do morro, por cima da tradicional fábrica do Café Campeão, em área física perfeita, apesar do difícil acesso, ela se destaca. Quando lá chegamos, nos surpreendemos. Além da bela área física e do espaço bem cuidado, vimos crianças guardando o devido respeito e assistimos ações de coordenadora e professores integrando alunos de vários bairros do município. Sentimos uma rajada de vento da esperança. Ariete bem animada nos diz: vamos criar a biblioteca da escola, em 2018.
Na Campanha da Visão, entre Escolas municipais de Marataizes e Cachoeiro, entre uma viagem e outra e durante as visitas escolares, foram entregues, após seleção de alunos com deficiência visual e confirmação nos exames oftalmológicos, mais de 100 óculos. No início de 2018, uma das crianças não contemplada na data marcada, ao receber seu óculos disse para a Dra. Fabiola: “Tia, obrigada, agora posso ver. Na escola vão parar de me chamar de burra por não conseguir ler.”

Sergio Damião Santana Moraes