domingo, 3 de setembro de 2017

Cultura e idosos

A cultura (manifestações artísticas, sociais, linguísticas e comportamentais) é mal preservada em nossa cidade, estado e país; assistimos, também, passivamente, um tratamento nada diferente para os idosos. Em nosso país: conhecimentos atuais, passado e futuro, pouco importa. Presenciamos a ausência de memória cultural. Se não queremos nossas lembranças, as pessoas, com o passar do tempo, tornam-se descartáveis. Sem utilidade para a sociedade. Com o tempo ouvem menos e deixam de ser ouvidos. São ignorados. Com os anos vividos, mesmo com toda experiência de vida, conhecimento adquirido, ainda assim são ignorados. No tempo perdem força muscular e diminuem capacidade de memorizar: perdem a identidade. Com a diminuição da produtividade ficam sem importância e utilidade. Reina a indiferença. A indiferença é gradativa. Mudanças sutis. Para sentirem-se vivos precisam produzir. Não podem parar. Não existe direito ao descanso. A sociedade exige produção até a morte. Poucos vivem com qualidade – direito ao lazer e descanso; nessa selva, a maioria sobrevive. Crescemos assim, incentivados para competição. As virtudes não são valorizadas. Com as exigências sociais: adoecemos. A sociedade adoeceu. Precisamos de um novo paradigma. Vivemos assim: descartando pessoas e valores. Exigindo produção e resultados. Descartamos os de mais idade, descartamos os sem memória, o feio; isolamos os alienados, descartamos o diferente. Temos que seguir um modelo. Modelo do belo, do vencedor, do inteligente. Manter uma padronização no vestir, no comportamento... Temos que acumular riquezas e poder. Na ausência do poder público, precisamos acumular riquezas para garantia do futuro. Séculos atrás existiam os mecenas. Burgueses e nobres mantinham a produção artística. Na atualidade, transferimos a responsabilidade para os governos. Pagamos impostos e lavamos as mãos quanto à produção cultural. Governos ruins, desorganizados, corruptos, desviam o dinheiro da saúde, educação. Justificam a falta de investimento nessas áreas: inutilidade da cultura e a falta de urgência na educação. Ficamos sem a força física em idade avançada e sem memória na juventude.
Por dois dias não trabalhei: um fim de semana. Visitei Museu e li poesias. Vi um quadro de cores vibrantes: Convento da Penha e a prainha de Vila Velha se destacavam. Uma alegria me invadiu o corpo. Procurei saber sobre o autor, um completo desconhecido. Pelo que ouvi, estava em idade avançada quando produziu o quadro. Vivia pelos bancos da Praça da Prainha, bem próximo à Igreja do Rosário – a mais antiga do Espírito Santo e Marco do início da Colonização do Solo Capixaba. Com a poesia, o jogo de palavras, o canto alegre e triste alternando nos versos, completava meu dia. Coisa simples de pessoa que não mais existe. Mesmo sem existir, alegrou meu fim de semana. Era idoso e usou toda experiência de vida na pintura. Como não valorizar a alegria despertada pela arte?




Sergio Damião Santana Moraes

Um pouco de poesia...

De Manoel de Barros, poeta do Pantanal, Eu não vou perturbar a paz: “De tarde um homem tem esperanças./ Está sozinho, possui um banco./ De tarde um homem sorri./ Se eu me sentasse a seu lado/ Saberia de seus mistérios/ Ouviria até sua respiração leve./ Se eu me sentasse a seu lado/ Descobriria o sinistro/ Ou doce alento de vida/ Que move suas pernas e braços./ Mas, ah! eu não vou perturbar a paz que ele depôs na praça, quieto.”

O galo

            
Foi em um domingo de anos atrás. A manhã era chuvosa, nada levava a crer que o sol pudesse iluminar e aquecer o dia. Mas o dia, 25 de julho, pertencia a São Cristóvão, protetor dos motoristas. Por interferência dele, as nuvens escuras foram afastadas dos caminhos de São Joaquim. O santo Joaquim seria festejado no dia seguinte, mas o distrito, em sua igreja, já se preparava para os agradecimentos ao padroeiro e à Santa Anna, os avós de Cristo. Cheguei com o sol alto, a indústria com os motores do tear e o seu barulho característico, e inconfundível, davam as boas vindas ao anunciar a produção da riqueza de nossa região. Depois de idas e vindas por caminhos desconhecidos, a pequena capela com as imagens não deixavam dúvidas, era a indústria São Joaquim, dos Gava. No terreiro ao lado se apresentavam as aves. Galinhas, galos, gansos, pavão... Alguém apresenta uma badeja com ovos. Ovos brancos e enormes. Sorri. Nunca tinha visto naquele tamanho, mas podia jurar: não eram de galinha. Conheço ovo de galinha. Apesar da urbanidade e total ignorância com as coisas da natureza e do meio rural, podia garantir que, aqueles não eram de galinha. Eram da “gansa”. Justificava a agitação dos seus donos no terreiro em frente. Ignorei os ovos maiores, mesmo com toda agitação do ganso, mesmo com a minha solidariedade, me concentrei nos ovos brancos menores, naqueles que reunia certeza de pertencerem à galinha. De longe fiquei observando a beleza das cores diversas do galo, sua postura, sua imponência, admiro seu canto. Apesar de toda beleza do galo e de suas cores inebriantes, voltei minha atenção e o olhar para a brancura do ovo de galinha, em todo seu mistério, em toda a vida ali presente. Na cozinha, o romper de sua fina casca, os pedaços da casca branca do ovo, era como acordar de um sonho ou de um devaneio. Era um despertar não desejado. Na casca do ovo se encontram as coisas que vi e as coisas armazenadas em memória, o romper das cascas rompiam os liames das coisas passadas. Os liames das coisas vividas, das coisas ditas e das não ditas. Das muitas coisas escondidas.
            Lembrei Clarice. Clarice Lispector, a ucraniana. Lembrei-me do seu conto: A galinha e o ovo. Do espanto ao se deparar com um ovo em uma frigideira. Foi apresentado em Encontro de Bruxaria na Colômbia, em 1975. Ele despertou a carreira de críticos literários, um mistério para a própria escritora, confunde o leitor. Em seu vai e vem, diz tudo da vida. Nada esclarece. Não se preocupa com respostas. Com sutileza e perspicácia nos leva a pensar na origem: ovo ou galinha. Não diz. Deixa a ave em liberdade para o cacarejar, a libera para ciscar em um terreiro qualquer. Ela se volta para o ovo, e em fim de leitura, permanecemos como no início, com nossa ignorância. Ficamos com as ebulições em nossas mentes. Atônitos e atentos às indagações da vida. Com os mesmos medos de sempre. Por fim, e para o fim de nossas incertezas, usamos o ovo para o nosso alimento.
           


Sergio Damião Santana Moraes

Um pouco de poesia...

De Manoel de Barros, poeta do Pantanal: “[...] Nosso conhecimento não era de estudar em livros./ Era de pegar de apalpar de ouvir e de outros sentidos./ Seria um saber primordial?...”