sexta-feira, 20 de abril de 2018

Bom dia, tristeza




Silvio pensava em Márcia e lia os textos de autoras literárias femininas. Lia romances, contos, crônicas e poesias de mulheres escritoras do mundo afora. Descobria um mundo literário diferente. Início de março, bem próximo ao Dia Internacional da Mulher. O verão em seus últimos dias, porém de calor intenso e chuvas fortes em fim de tardes. O rio apresentava-se belo, com seu leito preenchido, admirado do alto das pontes que o cruzavam. Estavam em mãos as Vozes do Deserto, livro da Nélida Piñon, primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras (ABL) e Bom dia, tristeza, da escritora francesa Françoise Sagan. Em certa parte do livro, estava escrito sobre o amor: “É outra coisa, é uma saudade.” É bem mais que um beijo, uma carícia... Ele sentia saudades. Algum dia havia sentido saudade de alguém? Da Márcia sentia. Então era amor? Fim de tarde, chovia. A noite se aproximava. Como um Califa, procuraria se assentar em sua sala, na parte mais confortável do seu apartamento, com os livros em mãos, se entreteria com as histórias da Scherezade. Procuraria não se lembrar de suas saudades. Aventurar-se-ia com Aladim, Alibaba e Simbad. Visitaria as areias do deserto de sua infância, o mundo que criou em suas primeiras leituras. Faria viagens imaginárias, visitaria um mundo de fantasias que havia esquecido. Naquela noite, como um Califa, reveria suas primeiras histórias infantis.
Ainda que a leitura o agradasse, ainda assim não conseguia concentrar-se. Naquela noite, os dois livros o incomodavam, não conseguia relaxar o suficiente. Lentamente, as palavras escritas aliviavam sua mente. Silenciosamente ele chorava com as lembranças que as vozes de Scherezade, a princesa que se dispôs ao sacrifício de permanecer aprisionada ao Califa para salvar a vida de outras mulheres, despertava. Encantava a imaginação inocente e suas fantasias. O imaginário de Scherezade, mesmo com toda opressão masculina, afastava a maldade da mente do monarca. Scherezade cumpria uma missão: dominar a mente do homem durante a noite, supostamente de amor, para evitar o extermínio, ao alvorecer, das mulheres do reino. Para isso usava a sedução, a criatividade, as fantasias das palavras. Transformava a vida amarga e vingativa do homem com seus contos das Mil e uma Noites, os mais belos contos árabes. Scherezade aludia à esperança.
De Sagan, Silvio estranhava a tristeza. Assim como estranharam os franceses de sessenta anos atrás. Uma desconhecida, Françoise, descrevia a alma de uma adolescente. Na voz de uma narradora na primeira pessoa, descrevia conflitos familiares. Desde a relação insegura com um pai imaturo, de amores alternantes e descompromissados, até seus desejos ocultos. Descreveu a banalidade das relações humanas nos nuances de uma personalidade feminina em formação. Ele se entristecia. Pensava no querer e não querer da Márcia, via nos relatos das personagens femininas de Nélida e Françoise, nas entrelinhas das suas histórias, a razão oscilante do comportamento amoroso da sua amada. Assim como o Califa, no deserto árabe, adormeceu com a voz de Scherezade. Adormeceu após horas de leitura. Acordou com uma lágrima em face. Página aberta, descrição da morte de Anne. Com o livro aberto, o título assustava: Bom dia, tristeza.



                                                      Sergio Damião Santana Moraes

Saúde Renal e as Mulheres



“Previna-se”: é o nome da Campanha Nacional da Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN) para prevenção da doença renal crônica. A insuficiência renal crônica, deficiência completa na função dos rins, leva a necessidade da terapia renal substitutiva - hemodiálise, e posterior transplante, tornou-se uma epidemia mundial em consequência do envelhecimento da população, da sobrevida maior do diabético, obesidade e aumento das pessoas adultas com hipertensão arterial sistêmica. No passado, a doença renal crônica era causada, principalmente, pelas nefrites e cálculos (pedras). Na atualidade, o diabetes mellitus e hipertensão são as mais frequentes. Nestes dois casos elas são silenciosas. Normalmente nascemos com dois rins e localizam-se na região lombar, nas costas, um de cada lado, cada rim pesa em torno de 150 gr e mede 12 cm. Podemos nascer e viver com um rim só, tanto que em vida podemos doar um rim para um parente que venha a precisar. Os rins filtram 25% de todo o nosso sangue a cada minuto; mantém o equilíbrio de água e sal dentro do corpo humano; produzem hormônios para evitar a anemia e fortalecer nossos ossos e controle da pressão sanguínea. Os rins possuem uma boa reserva funcional, e com isso, mesmo com lesão em suas células, podem por vários anos compensar essa perda. Por isso o alerta de “doença silenciosa”. Existe dor, muitas vezes insuportável, em caso de cólica renal, infecções urinárias e renais, nesses casos a disfunção, quando aparece, é reversível, dita insuficiência renal aguda. O exame de urina simples (EAS) e a dosagem da uréia e creatinina no sangue, exames baratos e de fácil realização, são recomendados principalmente para hipertensos, obesos, diabéticos e os com história na família de doença renal. A perda de proteína na urina é um bom marcador de lesão vascular renal e sistêmica. Diminuindo sua perda, controlando a hipertensão e mudanças de hábitos alimentares, diminuindo o sal na alimentação, podemos prevenir ou atenuar as doenças cardiovasculares - infarto do coração, derrame cerebral e insuficiência renal. Os sinais da doença renal: pressão alta, inchação nas pálpebras no período da manhã, sangue na urina, palidez cutânea e fraqueza. As pessoas com sinais de doença ou que já apresentam a doença renal devem evitar anti-inflamatórios. A insuficiência renal crônica pode se manifestar em qualquer idade. Por isso, o alerta para a prevenção iniciar-se na infância – devemos ficar atentos às crianças com infecção urinária de repetição.
Março é o mês do Rim. Este ano a Sociedade Brasileira de Nefrologia escolheu o dia 08 de Março – Dia Internacional da Mulher, para chamar a atenção para a Saúde dos rins das mulheres. A doença renal acomete igualmente homens e mulheres. Porém, existem particularidades nas mulheres: doença inflamatória como lúpus eritematoso sistêmico; quadros obstrutivos renais por tumor de colo de útero; comprometimento renal durante a gravidez... Convido as mulheres cachoeirenses que se destacam em suas várias atividades como as jornalistas Regina Monteiro e Celia Ferreira, Contadora de Histórias Maria Elvira, Acadêmica Marilene Depes, Secretária de Cultura Fernanda Martins, Irmã Otilia, Dona Jandira do Hifa e a médica pediatra Fabíola Moraes - Coordenadora do Programa Social e Auditoria da Unimed Sul Capixaba, para se juntarem à Sociedade de Nefrologia.



Sergio Damião Santana Moraes

Crônicas de uma viagem



            Viajar é uma das boas coisas da vida. Sempre guardamos boas lembranças. Em uma viagem encontramos lugares bonitos. Modificamos pensamentos e idéias. Renovamos conhecimentos. Evoluímos culturalmente. As “bobagens” ditas e feitas ficam por conta do idioma. Tudo se resolve. Algumas vezes nos decepcionamos, em outras, pagamos “micos”. Coisas de turistas. Outro momento acontece o inusitado. No final acabamos rindo das situações criadas e vividas.
            Em uma das primeiras viagens ao exterior, sul da Itália, próximo à Sorrento, Costa malfitana, com um grupo de brasileiros sentados à mesa, aguardava o jantar, era uma excursão da América Latina. Um casal e o filho foram incluídos à mesa, tratava-se de um casal e filho cubanos, o rapaz era um verdadeiro “brutamontes”. Falavam rápido, um espanhol de difícil entendimento. Encontrava-me próximo aos cubanos, para agradar, elevei minha “taça com vinho” e disse: Viva Fidel! Nos dias atuais não faria isso, a ilha do Caribe que Fidel Castro e um grupo de jovens sonhadores libertaram da ditadura de Fulgêncio Batista transformou-se em um país com alguns avanços sociais, mas sem o principal, a democracia e liberdade política. Porém, naquela ocasião, saudei Fidel. Um duplo erro. Errei por saudar o ditador de Cuba e errei por não perceber que os cubanos que ali estavam residiam em Miami. Eram exilados de Cuba e com ódio mortal do Fidel. A reação foi imediata e intensa. Falavam mais rápido ainda e ao mesmo tempo. Uma língua incompreensível. Eu só conseguia entender os gestos. Algo como nadar. Entendi que escaparam de Cuba por barco ou nadando. As várias intervenções acalmaram os nossos “hermanos”, passei o restante da viagem e da excursão com o “pé atrás” com os caribenhos. Por pouco não aconteceu um conflito internacional protagonizado por uma “saudação” desproposital. No final, ficou como coisa de turista brasileiro e inadvertido. Uma brincadeira de brasileiro.
            Aprendi a ser comedido desde então. Mas, muitas vezes, os constrangimentos são inevitáveis, mesmo com um mínimo de palavra. Desde a quase tragédia italiana, procuro ter cuidado com os outros turistas, mais ainda com o povo local. Evito conversar. Uma maneira de me proteger. Mas... Estava em Nova York. As avenidas e ruas são ótimas para se caminhar e conhecer a cidade. Seus luminosos não parecem poluição visual e sim, uma marca de Manhatan. Caminha-se e se descansa em suas ruas e avenidas. Em um desses locais públicos para se relaxar, em frente a Macy’s, uma grande loja de departamento americana, sentei-me em uma mesa, ocupei as duas cadeiras em volta com os pacotes e, observava os prédios, movimentos dos carros e das pessoas. Era o horário do lanche matinal, o almoço americano (hot dog). Aproximou-se uma americana, falava rápido, com um hot dog em mãos, acho que desejava sentar-se em uma das minhas cadeiras. Eu disse: No! Ela: No? Eu: No! Insistiu: No? Eu: No! Ela desistiu, para o meu alivio. Evitei um conflito diplomático com uma simples palavra em inglês.




Sergio Damião Santana Moraes

NOLENS VOLENS



“Não querendo, querendo.” A citação latina se apresenta na leitura diária. Definia com clareza o estado de espírito em que se encontrava. Silvio, após meses de ausência de contato físico e visual com Márcia, sentia-se perdido. Uma nova citação: Mea Culpa. Uma dúvida em seu íntimo. Culpa dele? Não. No amor, menos ainda na paixão, não existe culpados. Quem sabe? O destino, fortuna, coisas da emoção ou dos sentidos. A decisão foi racional. Viviam em tempos discordantes. Como se vivessem em épocas distantes em galáxias. Diferentes não só na idade, quase vinte anos, mas no tempo social. Separados por gerações. Por conta de suas diferenças a sociedade exigia o afastamento. Apesar de toda modernidade. Era mais fácil assim. O tempo que viveram a paixão foi uma fantasia. Viveram em um mundo próprio, mundo de emoções e sentimentos fortes, a civilização exigia um comportamento racional – exigia protocolo de convivência. Deviam sacrificar o amor e a paixão para se evitar sofrimentos. Mais ainda: evitar constrangimentos. Viveriam um mundo de aparências. O tempo se encarregaria de apagar o fogo da paixão. Os desejos desapareceriam nas suas cinzas. Foi assim na adolescência; seria assim na vida adulta. Nos livros, romances, poesias e relatos de amigos, Silvio constatava que os que fugiram ao comportamento exigido pela sociedade feriram-se até a morte. Ele tinha medo.
 Difficile Est Longum Subito Deponere Amorem: “Como é difícil esquecer de repente um longo amor.” Em suas citações, a cada frase uma lembrança. Lembrava-se do seu último encontro. Pediu uma nova chance, um último beijo, quem sabe um abraço, ou o que mais desejava: uma longa tarde de amor. Não. Márcia estava decidida. Disse: acabou. Não voltaria a sofrer. Não se encontrariam mais. Cabia a ele curar-se da doença, curar-se da dependência. Uma forma de dependência química, a atividade era cerebral, apesar de nascer em suas emoções, em seus sentimentos, em seus desejos. Uma intensa ação cerebral, como ondas, encharcando sua mente com imagens da Márcia. Precisava curar-se. Uma decisão, renovada é verdade. Esquecer era uma necessidade. O tempo cicatrizaria o restante.
Retornava à vida. Alguns momentos difíceis: fim de tarde, fim de semana, domingo à tarde... Nos meses seguintes, lentamente, as lembranças iam se apagando, começava a não lembrar. Sentia-se aliviado, diminuía o desejo e a necessidade de procurá-la. Estava leve e feliz. Diminuía a dependência daquela paixão. Uma saudade leve, um quase amor. Lembrava-se, raramente, das tardes em que se encontravam. Da intensidade e paixão que demonstravam quando juntos. Dos beijos e abraços, dos corpos suados se apertando. Algo distante. Uma recordação, uma lembrança sem sofrimento. Começava a curar-se. Era um domingo. Na terça, Márcia apareceu. Nada falou. Encontrava-se à sua frente. Em local que não deveria estar. Uma provocação. Fingiu não ver. Nada falou. Nem mesmo uma saudação. Evitou o bom dia. Ignorou. Fez o que tinha que fazer: ignorar. Na saída, olhou. Encontrava-se como no primeiro dia em que a conhecera. Lembrou o local do encontro: farmácia. Aproximou-se. Nada disseram. Olharam-se. No olhar estava escrito: meu amor. O beijo no rosto, uma lágrima nas pálpebras. Ela disse: meu amor...



Sergio Damião Sant´Anna Moraes

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Balzaquianas

  
A apaixonante vida do francês Honoré de Balzac (1799–1850) levou à criação da Comédia Humana e sua fama em toda Europa. Apesar de vibrante, foi uma vida de relações conflituosas: com a mãe e com outros escritores da época como Victor Hugo e Eugéne Sue. Seus amores e os vários escândalos são mostrados pelo ator Gérard Depardieu em filmes produzidos pela Versátil e a Beta Film. Um “glutão”, vibrante com as coisas belas da vida. Um apaixonado pela mulher da meia idade. Após o filme, lembrei de uma balzaquiana atual.
            Encontrei, no corredor do hospital, uma mulher radiante de alegria. Demonstrava em gestos e expressões faciais toda sua felicidade. Um momento único, estranho até certo ponto, pelo lugar em que se encontrava. Encontrava-se em frente à sala de parto, normalmente um local carregado de dor das parturientes. Pela expressão assemelhava-se a uma menina em um jogo de amarelinhas, saltitando pelas linhas imaginárias, em busca da pequena pedra entre os espaços vazios no chão do quintal de uma casa antiga dos nossos avós.
            Era assim que se apresentava. Assemelhava-se à uma menina adolescente. Mas, não, não era uma menina, e sim, uma mulher em meia idade. Em sua mão uma folha de papel. Imaginei um resultado de exame laboratorial, o qual foi confirmado logo depois. Por estar junto ao serviço de ginecologia e obstetrícia, e pela felicidade que demonstrava, pensei em um teste de gravidez. Para minha surpresa era resultado de um exame, mas totalmente contrário ao imaginado, tratava-se de dosagens hormonais e pelo achado não poderia mais engravidar, encontrava-se hormonalmente na menopausa, disse. Apesar do climatério, encontrava-se alegre. O tempo, inimigo da vida humana, estava dominado. Não temia o passar dos anos. Ele criara um estado interessante, um estágio de amadurecimento. A mulher encontrava-se livre para a reposição das energias e seguiria sem medos. Questionei a alegria, pois, não era um fato comum e frequentemente observa-se certo desânimo em parte das mulheres. Sentia-se diferente, foi o que me disse. Apenas diferente. Fisicamente bem, procurara preparar-se para aquilo que era inevitável, sua queda hormonal, e para tanto bastava a reposição. Pela expressão da mulher que encontrei no corredor, pelo esbanjamento de alegria, pela confiança, não tive dúvidas, as balzaquianas mudaram, ganharam uma ou duas décadas e, no futuro, bem mais. Um segredo a se desvendar, o tesouro da vida na alegria.
            A expressão observada no corredor do hospital pode vir a dominar os homens. No embate biológico e cronológico os homens já estão perdendo. O que está levando os homens a perderem para o dito sexo frágil? As mulheres tomam conta das finanças, dos filhos e da casa. Com o tempo não precisarão dos homens, seremos descartáveis.
            Pela segurança demonstrada por aquela mulher, mesmo com a baixa hormonal, corri e procurei fortalecer um músculo que a testosterona lentamente não mais consegue manter. Talvez seja melhor assim, menos músculos e mais sentimentos. Quem sabe a reposição do hormônio seja substituída, no futuro, por uma pitada de alegria. Ou mesmo, seja esta a explicação funcional e biológica do bem estar. Bem como, a solução para se evitar o envelhecimento celular e o segredo da sua conservação.


Sergio Damião Sant´Anna Moraes

COGITO, ERGO SUM



“Penso, logo existo.” Tradução latina da afirmação em que o filósofo francês René Descartes (Discurso da razão, 1637) reconhecia a primeira verdade duma doutrina construída sobre a evidência e a razão. Com o tempo, na discussão do que nos faz humanos, foi acrescida, à assertiva cartesiana, a memória. No livro de Paulo Rónai, Não perca o seu Latim, Bazar do Tempo, 2017, encontramos a expressão: “Conditio Sine Quã Non – condição sem a qual não...”, termo com que se designa, em Direito, uma condição essencial à realização de uma transação, de um ato jurídico. Citam-se muitas vezes apenas as três últimas palavras. Sem a memória, morremos historicamente. Permanece o corpo físico, precisamos dos outros para que se lembrem da nossa existência. Sem memória não se faz uma rua, cidade, instituição, pessoa, povo... Sem memória não se faz um país! Sem memória nunca existiremos de fato! Sem memória... O brasileiro parece um povo sem memória. Na política mais ainda. Esquece, a cada eleição, mesmo a de curto prazo, de lembrar-se dos corruptos, malfeitores, dos usurpadores do poder, dos destruidores de benefícios da coletividade. Esquece-se de cobrar as promessas políticas de gestores e legisladores. Permanece sem memória a cada discurso renovado de velhas raposas eleitorais. Uma memória política desastrosa. Uma memória a ser construída.
Somos sem memória como povo e permanecemos desmemoriados no campo individual. Não nos lembramos de agradecer à natureza pelas coisas belas que vemos no nascer do dia e esquecemos-nos da preservação. Não nos lembramos de agradecer pela saúde que desfrutamos, não agradecemos pelas doenças que não adquirimos. Lembramos-nos de pedir ao criador, e a quem está próximo de nós, os bens que não possuímos.  Quando adquirimos algo, esquecemos-nos de doar parte do que recebemos. Vivemos assim, com a memória seletiva, lembramos o que nos interessa financeiramente. Perdemos a memória afetiva. Não valorizamos a memória de cidades, ruas, bairros... Esquecemos os que nos antecederam, esquecemos aqueles que construíram a estrutura que ora desfrutamos. A geração do presente esquece com rapidez os que existiram. Vivem do presente. Vivem sem memória. São os Zumbis do presente. Fabricam os Zumbis do futuro. Os políticos sem memória utilizam artifícios do presente, criam novos fatos e escondem o passado. Desvalorizam culturas e artes: músicas, artesanatos, danças, línguas... Para eles, quanto menos lembrarmos melhor.
Nos hospitais construímos a memória com os prontuários manuais e eletrônicos. Na Santa Casa de Cachoeiro, uma instituição centenária, das mais antigas do Espírito Santo, o Centro de Estudos “Dr. Edson Rebello Moreira” guarda a memória do hospital nas fotografias do Corpo Clínico, depoimentos e livros. O avanço técnico não pode ser separado das lembranças clínicas. O aprendizado, produto das relações interpessoais. deve ser valorizado. A harmonia deve prevalecer. Não agindo assim, corre-se o risco de desumanizar pessoas e instituições. No campo pessoal, buscamos a imortalidade. Algo impossível no mundo biológico. A certeza da morte nos persegue. Resta guardarmos a memória. Sem ela, seremos todos esquecidos.



Sergio Damião Santana Moraes

Stragalar




            Acho que já contei a história dos Linguarudos de Santo Antônio, bairro da nossa capital, onde nasci e cresci. Era um Clube de 25 homens, cada um representando o número do bicho do jogo homônimo e proibido. Reuniam-se nas manhãs de domingo, próximo à barbearia localizada no final do Cemitério Municipal, na subida do Santuário do santo casamenteiro. O nome não deixa dúvida em relação ao que faziam. A Assembléia servia para falarem mal da vida dos outros e deles mesmos. Divertiam-se com as histórias contadas durante o carteado e dominó, enquanto as crianças brincavam com a bola de vidro ou de couro. Nesse tempo, as mulheres preparavam o frango ao molho pardo com batata inglesa, bem como a macarronada. Não reclamavam. Era seu ofício, servir os linguarudos. No final do ano, um deles ganhava no jogo - dezena, centena, milhar ou no grupo. Pelo tamanho e duração da festa imaginava-se o valor arrecadado. No ano seguinte, após a entrega do troféu, uma língua esculpida em madeira, o vencedor era substituído por um novo membro, escolhido entre os novos que se destacava na arte da verve. Na verdade, um bom linguarudo. Durante o ano, riam do mau humor da anfitriã e da comida ruim servida. Com o Clube da Língua a tradição era mantida no bairro. Acho também que servia de proteção, uma maneira de saberem, em primeira mão, a notícia coloquial.
            No final da adolescência conheci na prainha de Vila Velha, onde a colonização do solo do Espírito Santo começou; onde temos a melhor vista do Convento da Penha; onde se localiza nossa primeira Igreja: do Rosário; onde os barcos deveriam atracar e zarpar para um passeio turístico pela baía de Vitória; onde o parque deveria estar mais bem cuidado, exatamente ali, em um belo boteco que além de abrigar os que gostam de “conversa fiada” e “causos”, também abriga o melhor da culinária capixaba: a moqueca e os frutos do mar. Ali as mulheres, antes submissas, se revoltaram e gritaram: “Este boteco é um verdadeiro estraga lar.” O dono, muito esperto, aproveitou e modernizou a palavra (antecipando a globalização) colocou o nome do estabelecimento: “Stragalar”. Mesmo com o boicote feminino, o local cresceu e se popularizou. É verdade que, o tempero local, no final, acabou conquistando a simpatia das revolucionárias. Ainda hoje é possível se encantar com o tempero e as boas histórias.
            Quando adulto e, de bem mais idade, em Cachoeiro, outro Clube conheci: Clube de Caminhadas. Um Clube de menos conversas, aberto a homens, mulheres e crianças. Um Clube para preservar o coração. O horário da partida para as trilhas e aventuras permite conhecer bares e boêmios do fim da madrugada e do nascer do sol. Não sei quanto às mulheres desses boêmios dos “pés sujos” e botequins. Mas as mulheres do Clube decididas são. E bem cedo estão de prontidão. As histórias dos bares dos pescadores de Marataízes que encontramos em fim de caminhada são semelhantes aos dos Linguarudos. O Stragalar deve ser diferente, pois, foi lá que Humberto Pitanga procurou sua amada Virginia, momentos antes de partir.

           
Sergio Damião Santana Moraes

Tic-tac


O relógio batia. Um pequeno relógio despertador encontrava-se junto aos meus ouvidos, na cabeceira da cama. Amanhecia, domingo de verão, dia depois de completar sessenta anos de idade. Entrava na sétima década de vida. O meu primeiro dia de uma nova década, meu primeiro dia como idoso pelas leis do meu país. Com o corpo estendido no colchão da cama, despertava. Ainda sonolento, permaneci com os olhos fechados. No apartamento, próximo ao mar, reinava o silêncio, ouvia: tic-tac, tic-tac, tic-tac; ao fundo, bem distante, o despejar das ondas do mar nas areias da praia (chuá). Algo inebriante. Domingo: nunca soube, permaneço na ignorância, se estou iniciando ou terminando a semana, não importa. O domingo foi feito para o descanso. Acho que, o criador do tic-tac, e das ondas do mar, decretou o descanso desde o início dos tempos. Bem antes dos calendários e dos homens decidirem pela contagem dos dias, horas, segundos... Bem antes dos homens contarem seu tempo de vida, bem antes de tudo. No domingo, minha mãe, em um dos seus rituais, cerimoniosamente, preparava nossa refeição: frango ao molho pardo com batata inglesa, arroz, feijão e macarronada. Acordava cedo, acordava com ela, com habilidade e respeito, após ferver a água, disponibilizar um prato com vinagre como recipiente para o sangue, depenava o frango. Eu ajudava na coleta do sangue, na retirada das penas e na separação das partes a serem consumidas. O restante ela fazia com maestria, ano após ano. Enquanto lembrava as coisas da minha mãe, esqueci-me dos sons. Logo, eles retornaram. Instigantes.
Ainda com os olhos fechados, na alternância do despertar e sonolência, o tic-tac anunciava um tempo passado. A cada batida, meu tempo de vida escorria; avançava a contagem do meu tempo de vida. Vivemos em contagem regressiva. Desde o nascimento, nossa primeira perda. Perdemos segurança do útero e placenta do ventre de nossas mães. Passamos a conviver com outras perdas da infância, adolescência e fase adulta. Entre perdas e ganhos; entre encontros e desencontros, alcançamos o equilíbrio e a maturidade do saber que a vida é feita de perdas. Morremos e nascemos nas perdas. A maturidade advém da superação das dores de coisas perdidas. Perdemos entes queridos, oportunidades de relacionamentos e trabalho, perdemos amores... Fazemos nossas escolhas. Silenciosamente o barulho do despejar das águas das ondas do mar nas areias da Praia de Itapoã, em Vila Velha, abafou o tic-tac. Quando criança, após acesso de tosse, comum para a idade, minha mãe, para minha tranquilidade, colocava os ouvidos em meu peito em busca de algum “chiado”. Dizia: ouvi seu relógio, ouvi seu coração, ouvi tic-tac. Quando cresci, como médico, ao auscultar outros corações, ouvi: tum-tá, tum-tá, tum-tá. Senti saudades do tic-tac que ela dizia ouvir.
No silêncio do apartamento, recusava abrir os olhos. Não queria voltar à realidade, pisar no chão. No primeiro dia da minha sétima década, senti medo. Deixava alternar os sons. Neles permaneciam os sonhos. Apesar de não ouvir as batidas do meu coração, podia sentir sua regularidade. Com as lembranças, sentia suas batidas aumentarem em frequência. Em seguida, o despertador tocou. O tic-tac deu lugar a um som alto e forte. Despertei para a vida. Levantei e iniciei meu retorno para Cachoeiro de Itapemirim.


Sergio Damião Santana Moraes

Violência


Violência é o mal do século XXI. Fruto de guerras e intolerâncias religiosas e étnicas. Algo impensado para o avanço tecnológico e econômico atual. No Brasil, e restante da América Latina, pela desigualdade social e déficit educacional, pela má distribuição das riquezas e renda, temos índices alarmantes de mortes traumáticas. Apesar das guerras no mundo, é no nosso Continente, mais ainda no Brasil, que tiros, facadas, acidentes automobilísticos e motociclísticos ceifam mais vidas. Um desastre social, mais que anunciado e previsto no século passado. Uma vergonha para um país que se encontra entre as 10 maiores economias do mundo. Não cuidamos da educação, da transparência de instituições e nos encontramos em estado desolador. Uma corrupção alastrada em todos os setores: esporte, político, financeiro... Um desalento. Uma tristeza enorme. A cada início de ano uma rebelião em nossos presídios; uma greve de policial militar. Algo absurdo, para um país minimamente civilizado. Um aviso à sociedade. Criamos um monstro em nossos presídios. Uma bomba relógio social produzida nos séculos anteriores.
Mas, no fim de dezembro, início de janeiro, eu vi ações da sociedade civil.  Da sociedade devemos esperar: cobranças, ações e vigilância. Eu vi duas escolas e uma ação de voluntariados. O melhor caminho: educação e ação voluntária. Em Vila Velha, município canela verde capixaba: Escola da Fundação Bradesco. Em Cachoeiro: Supercreche Ariete Moulim no bairro São Lucas e a Campanha da Visão para crianças em idade escolar do Núcleo Feminino da Unimed Sul Capixaba (capitaneada pela médica pediatra Fabiola).
A Escola da Fundação Bradesco é um modelo educacional da iniciativa privada. Uma Escola por estado, com exceção de São Paulo (duas). Alunos acompanhados por professores motivados e de altíssimo nível curricular. Com bom salário e incentivados. Prestação de assistência educacional integral e familiar. Integração de crianças e adolescentes de vários níveis sociais. Uma formação completa. Exemplo de uma boa gestão escolar.
Em Cachoeiro: a Supercreche Ariette Moulim, Escola municipal, uma homenagem à escritora e historiadora das mais respeitadas e queridas da nossa cidade. No bairro São Lucas, no alto do morro, por cima da tradicional fábrica do Café Campeão, em área física perfeita, apesar do difícil acesso, ela se destaca. Quando lá chegamos, nos surpreendemos. Além da bela área física e do espaço bem cuidado, vimos crianças guardando o devido respeito e assistimos ações de coordenadora e professores integrando alunos de vários bairros do município. Sentimos uma rajada de vento da esperança. Ariete bem animada nos diz: vamos criar a biblioteca da escola, em 2018.
Na Campanha da Visão, entre Escolas municipais de Marataizes e Cachoeiro, entre uma viagem e outra e durante as visitas escolares, foram entregues, após seleção de alunos com deficiência visual e confirmação nos exames oftalmológicos, mais de 100 óculos. No início de 2018, uma das crianças não contemplada na data marcada, ao receber seu óculos disse para a Dra. Fabiola: “Tia, obrigada, agora posso ver. Na escola vão parar de me chamar de burra por não conseguir ler.”

Sergio Damião Santana Moraes

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Encontro de Almas

Desde o último quase encontro com Márcia, na verdade, um telefonema não completado por falta de coragem, Silvio encontrava-se angustiado e triste. Mostrava-se, em seu dia a dia, melancólico. Os colegas percebiam a tristeza no olhar, a falta de interesse por coisas que antes o faziam vibrar, coisas que lhe davam excitação (“tesão”), aquilo que os gregos chamavam de Eros – a força vital. A força e energia que nos faz vibrar e nos sentirmos vivos. Desejosos por um novo dia, mesmo com todas dificuldades e intempéries. O amor por Márcia, não realizado, causava em Silvio a doença da alma - amor romântico ou cortês, como denominavam os medievais.  A questão: como curar uma doença que nascia e crescia no mais profundo do ser. Sem modificações físicas aparentes. Nenhum sinal em pele, face, membros... Sem alterações em exames laboratoriais e de imagens corporal. Sem evidências físicas a serem identificadas pelo médico. Nada que o psicólogo pudesse agir. Uma doença causada pelo desejo e sofrimento. Vislumbrava duas opções: lutar por seu amor ou esquecer. Para vencer, precisava superar sua covardia. Para a cura daquela doença, se fosse preciso agiria como um verdadeiro canalha. Antes usaria as virtudes para enfrentar os desafios que ora se apresentavam. Decidido, buscou as ruas da cidade.
Tinha consciência do que enfrentaria. Até então vivia tranquilo, verdadeiramente em paz. Desde o primeiro encontro com Márcia, uma verdadeira agonia apossara-se da sua mente. Dias inquietantes, uma aflição, algo não desejado, por muitas vezes rejeitado, necessitava recuperar a paz que já não existia. No momento: a paz seria encontrá-la mesmo por alguns instantes. Vê-la ou falar-lhe já seria suficiente. Passara-se um dia desde a ligação da Márcia. Tentaria contato telefônico. Insistentemente, repetia o toque no telefone, quase automático. Nada. Nenhuma resposta. Apenas a triste mensagem do celular: ocupado ou desligado pelo cliente. Agiu como detetive, procurou um endereço pelo número da placa do carro. Obteve o endereço de trabalho da Márcia. Aguardou nas proximidades da empresa. Lembrava um serviço de informática. De repente Márcia surge ao longe, o vidro do carro aberto permite a identificação. Podia ver seu rosto, a pele branca da face contrastava com o escurecimento dos cabelos. Deixou-se ver e sorriu; ela correspondeu. Em seguida, repetiu a ligação. Insistiu uma, duas, na terceira ela atendeu. Alô... Ele não soube o que dizer. Balbuciou: meu amor... Ela: que saudade. Pronto. Ele sabia que deveria assumir riscos. Desejava aquele corpo.  Perderia sua alma, adoeceria mais e até morreria de amor.
Conversaram. Minutos, beirando a hora. Assuntos diversos. Normalmente não demoraria ao celular. Despediram-se quase noite. Nada marcaram. No dia seguinte, pela manhã, um novo telefonema, não respondido. Em final de tarde, encontrava-se no mesmo local do dia anterior, era uma quinta-feira. Retornou na sexta. E no sábado encontraram-se. Um encontro rápido. O bastante para o encontro de mãos e corpos. Um beijo. Bem junto ao carro. Um beijo quase roubado. No final do beijo, com os lábios livres, uma decepção, ela diz: acabou. Nunca mais. Não posso te encontrar. Era um fim de semana... Manhã de sábado, a solidão do domingo se anunciava.





Sergio Damião Santana Moraes

Um pouco de poesia...


De Fernando Pessoa (Alberto Caeiro): “Sou um guardador de rebanhos./ O rebanho é os meus pensamentos/ E os meus pensamentos são todos sensações./ Penso com os olhos e com os ouvidos/ E com as mãos e os pés/ E com o nariz e a boca./ Pensar uma flor e vê-la e cheirá-la/ E comer um fruto é saber-lhe o sentido./ Por isso quando num dia de calor/ Me sinto triste de gozá-lo tanto./ E me deito ao comprido na erva./ E fecho os olhos quentes,/ Sinto todo o meu corpo deitado na realidade./ Sei a verdade e sou feliz.”

Nostalgia

Márcia encontrava-se como em tempos antigos, tempos da civilização grega, encontrava-se nostálgica. Com uma saudade dolorida do seu quase amor. Apresentava uma lembrança com dor. Lembrava Silvio. Um sentimento único, nunca experimentado ou vivido. Apenas sonhado. Apesar de carregar dentro de si o sentimento, apesar de alimentá-lo sutilmente, e silenciosamente, apesar de desejar vivê-lo: retornara ao casamento. Reativava um matrimônio desgastado de muitos desencontros. Quando encontrou Silvio, meses atrás, apresentava-se vulnerável. Uma das razões do encantamento. Algo diferente encontrou. Diferente no olhar, no cheiro, nas coisas não explicadas. Coisas que despertaram uma paixão nunca experimentada. Um desejo intenso de entrega total: física e emocional. Quando da decisão de não atender as ligações telefônicas do Silvio, o número na tela do telefone celular demorara em se apagar. Visualizava o número, o nome encontrava-se em sua mente, gravado nas imagens do seu desejo. O som da ligação no seu celular despertava o desejo reprimido. Os dias após aquele telefonema foram angustiantes.
Gradativamente a vida voltava à sua rotina. Trabalho pela manhã e tarde, filhos na escola, encontros com amigos e a conciliação com o marido. Mas, a todo instante retornavam as lembranças. No vento forte: a voz; na brisa do mar: as lembranças do cheiro de Silvio. Na brisa do mar surgiam o olhar carente, a postura e o chamamento desejoso. Enxergava o que os olhos não viam. Eram instantes desejados. Sem chance de se realizarem. Por instantes, a racionalidade era jogada às traças. Sentia-se viva com o sentimento. Sentia-se viva com os seus desejos. Desejava querer, mais que realizar o seu desejo. Um pensamento confuso e conflitante: desejar era tão necessário quanto realizar seus sonhos. Logo depois, seguia a rotina diária e a vida sem riscos. Passaram-se meses. Márcia, por muitos momentos, vivia conflitos. Recusa e esperança de encontrar seu amor quase perfeito. Acreditava no acaso. Vivia alternante, um vazio em seus momentos de silêncio, em seus pensamentos e devaneios, nos momentos em que o sono demorava em domar as lacunas de sua vida. Certa manhã acordara decidida, procuraria seu amor não experimentado. Procuraria a clínica e marcaria uma consulta. O verão se aproximava e necessitava renovar os cremes protetores do sol. Quando lá chegasse, perguntaria à secretária de sua médica sobre a data da consulta anterior. Sondaria sobre o Silvio. Do Silvio lembrava o médico, especialidade e o motivo da consulta, bem como a data.
 Além do número do telefone, obteve o endereço de trabalho do Silvio. No mesmo dia, em fim de tarde, encontrava-se bem perto dele. Um leve toque no celular, uma chamada apenas. A resposta foi imediata, quase uma mensagem telepática. Como se ele estivesse esperando sua ligação, embora com tanto atraso. Ouviu um alô profundo. Márcia permanecia calada, nada respondia. Ouviu diversos alôs, sentia a respiração do Silvio. Um longo e demorado silêncio, uma eternidade. Após o silêncio, o número na tela do celular desaparecia. Reapareceu em segundos. Nada mais ouvia. Girou a chave de ignição do carro. Deu partida em direção aos filhos que esperavam na porta da escola.



Sergio Damião Santana Moraes

Um pouco de poesia...

De Augusto dos Anjos, Versos de Amor: “Parece muito doce aquela cana./ Descasco-a, provo-a, chupo-a... Ilusão treda!/ O amor, poeta, é como a cana azeda./ A toda a boca que o não prova engana./ Quis saber que era o amor, por experiência,/ E hoje que, enfim, conheço o seu conteúdo,/ Pudera eu ter, eu que idolatro o estudo,/ Todas as ciências menos esta ciência!” [...]

Lamentações

“Lamentar uma dor passada, no presente, é criar outra dor e sofrer novamente.” Silvio lia os versos da tradução de poesia inglesa. Não sabia o nome do autor, porém se encantava com o encadeamento da musicalidade poética. Os versos se misturavam à sua desilusão amorosa. Na verdade, um quase amor. Para não sofrer, deveria esquecer. Apagar lembranças. Necessitava da perda de memória recente e seletiva, algo que a ciência médica não o ajudaria, não conseguiria explicar a seletividade de memória. Era uma questão de escolha: esquecer ou sofrer. Sua decisão: não lamentar dores passadas. Escolheria viver.
Encontrava-se em meia idade. Fisicamente bem. Em bom estado clinico e geral, como diriam os médicos. Emocionalmente nem tanto. Sentimentalmente pior. Até então, relações amorosas superficiais e passageiras. A maioria sem vestígios de sua existência. Nada a lembrar ou festejar. Por isso, a empolgação ao conhecer Marcia. Uma centelha de paixão. Possibilidade de amor verdadeiro. Esperança de poder dizer: meu amor. Algo que nunca pronunciara em seus relacionamentos. A dor que sentiu com o não atendimento das suas ligações pela Marcia até certo ponto o animava. Não que fosse masoquista e desejasse o sofrimento. Com a dor que sentia, podia dizer: estou vivo, sinto a dor da paixão que os poetas e amantes descrevem em livros e aparecem em bares das cidades. Mas a persistência da dor o maltratava. Melhor esquecer seu quase amor, concluiu. Em pensamento reafirmou: vou esquecer. Apagarei de memória a silhueta do corpo e sorriso da Marcia. Assim como apagava o número de telefone em seu celular.
No dia seguinte, ao acordar, ainda na cama, o pensamento retornava. Lampejos, segundos de lembranças, parecia inevitável o retorno de imagens não desejadas. Apagar o número de telefone foi uma decisão fácil, difícil era apagar as imagens. Não dominava sua mente. Tornava-se autônoma. Levantou-se lentamente. Há algum tempo percebia uma lentidão nos movimentos de braços e pernas. Bem como no raciocínio. Atribuía ao cansaço físico e mental das atividades no serviço. Gradativamente apresentava-se como um homem lento. Lento nas decisões, nas refeições e no falar. Não parecia perturbá-lo, incomodava seus interlocutores. Sentia necessidade de viver uma paixão. Isso, certamente, o reanimaria. Lembrou-se dos versos: “Lamentar uma dor passada é sofrer novamente.” Guardava o sentido da frase: lembrar, dor e sofrer. Naquele dia, em seu carro, no trânsito lento, no retorno para casa, lembraria apenas das boas coisas da vida.
Aos 50 anos de idade encontrava-se sozinho. Não se sentia solitário. Gostava dos seus momentos de solidão e silêncio. Eles foram preenchidos, nos últimos meses, com imagens da Marcia. Incomodava. A paz em que vivia desapareceu. Ainda, a todo instante, sentia necessidade de encontrá-la. Mas... Existiam as crianças. Perderia seus silêncios e individualidade. Quanto mais lutava pelo apagamento de memória, mais ela se tornava viva. O presente era ocupado pela dor de uma paixão não correspondida. Como não lembrar? Se o desejo era intenso. Na lentidão dos seus 50 anos, pensou: não lembrar era a chance de não sofrer; sem as lembranças morreria um pouco a cada dia.


Sergio Damião Santana Moraes

Um pouco de poesia...



De Augusto dos Anjos, Solitário: “Como um fantasma que se refugia/ Na solidão da natureza morta,/ Por trás dos ermos túmulos, um dia,/ Eu fui refugiar-me à tua porta!/ Fazia frio, e o frio que fazia/ Não era esse que a carne nos conforta.../ Cortava assim como em carniçaria/ O aço das facas incisivas corta!/ Mas tu não vieste ver minha Desgraça!/ E eu saí, como quem tudo repele,/ - Velho caixão a carregar destroços -/ Levando apenas na tumbal carcaça/  O pergaminho singular da pele/ E o chocalho fatídico dos ossos!”

Desilisão

“Vamos fugir. Para outro lugar baby. Vamos fugir. Onde quer que você vá que você me carregue.” No rádio do carro, ele ouvia a música. Em seguida: “Eu preciso te falar. Te encontrar de qualquer jeito. Prá sentar e conversar. [...] Eu preciso respirar o mesmo ar que te rodeia e na pele quero ter o mesmo sol que te bronzeia...” Os acordes despertavam em  Silvio as lembranças de Marcia. O amor perfeito que nunca se concretizou. Lembrava-se de meses atrás, logo após a consulta médica, com a constatação da alteração em próstata, apresentava-se fragilizado. Marcia não atendeu suas ligações. A música despertava bem mais que sentimentos adormecidos. Despertava a decepção vivida. Da Marcia, lembrava: silhueta do corpo e as linhas perfeitas de sua face. Lembrava-se do sorriso e dos cabelos lisos cobrindo os ombros, bem como do olhar. Não lembrava a voz. Permanecia em sua memória: o cheiro e o olhar. Os sentidos aguçados do desejo. Sentidos da memória viva, apesar dos meses passados. Era fim de tarde, dia ensolarado e quente, encontrava-se dentro do carro, apesar de confortável e com ar refrigerado ligado, sentia-se incomodado, a música o incomodava. Sentia-se melancólico com as lembranças. Perdia a chance de viver um amor perfeito. Por isso a música o incomodava tanto; trazia o sentimento de perda – parte de sua vida deixava de existir. Morria um pouco, com a perda daquele amor. Morava em uma cidade mediana em população e imensa em trânsito de carros e motos. Aguardava o retorno para casa. Mantinha hábitos saudáveis: trabalho, casa, ginástica e moderação nos alimentos e bebida alcoólica. Fortalecia o corpo e mantinha uma mente sã. Envelhecia com qualidade de vida. Alinhava seus pensamentos em seus momentos de solidão e silêncio. Um desses momentos era no retorno para casa, com a lentidão dos carros no trânsito intenso.
Naquele dia, as buzinas pareciam irritantes. Algo que não sentia em dias anteriores. As buzinas atrapalhavam seus devaneios. As motos junto ao retrovisor do seu carro eram uma agressão ao seu bom senso. Pensou em abrir a porta do carro e agredir o motociclista. Por pouco... Conseguiu controlar-se. Voltava o pensamento ao rosto e ao corpo perfeito do seu amor. De repente, em leve movimento de cabeça, identificava a sua amada. Um carro à frente. A poucos metros, mesmo com o sol forte em seu rosto, visualizava detalhes do cabelo, pescoço e ombro. Com as imagens do carro ao lado reativava uma memória que achava perdida. Com ansiedade chegava seu carro próximo ao dela, ficaria lado a lado, sentiria seu cheiro - reativaria a memória olfativa. Acordaria o animal que carregava em suas entranhas. Despertaria o vulcão adormecido nos meses de solidão. O trânsito não permitia a aproximação, pensou em abandonar o carro, as motos em vai e vem alucinante não permitiam. Buzinava. Algo que nunca fizera: buzinar inutilmente. Pura ansiedade. Vivia a angústia. A poucos metros podia ter o contato visual. Enquanto tentava o contato, pensou: e se ela recusasse em atendê-lo? Usaria a chantagem emocional, algo que a convencesse a largar o carro no acostamento e o seguir para um lugar qualquer. O carro à frente avançou o sinal. Ele parou ao lado do carro da sua amada. A tristeza foi enorme, mais uma desilusão, no veículo ao lado não se encontrava o seu amor perfeito.




Sergio Damião Santana Moraes

Um amor perfeito


Encontrava-se sentado, observava o vai e vem das pessoas. Pensava nas paixões e nos vários tipos de amores. No amor de mãe, pai, filho, amigos... Amores fraternais. Lembrou-se do mais instigante, daquele que foge aos conceitos e nem sempre se explica: o amor entre um homem e uma mulher. Amor e paixão se confundindo na loucura dos desejos. Coisas que os poetas descrevem com precisão, maioria das vezes sem nunca ter vivenciado, descrevem dores que nunca sentiram e sentem o fogo de uma paixão que nunca possuíram. Ao fim do pensamento, conclui: o amor perfeito, entre um homem e uma mulher, nunca é duradouro. Sempre se modificará. De tão intenso é impossível vivê-lo por um longo tempo. O amor intenso, e perfeito, com o passar dos dias cria dependências, conflitos do querer e não querer, céu e inferno, angústias... Vive-se minutos de alívios e horas de angústias. Algo imaturo, próprio dos adolescentes. Por ser um sentimento intenso, acontece poucas vezes na vida. Quando na vida adulta, a racionalidade humana não permite seu desabrochar. A chama do desejo se apaga em um piscar de olhos, numa curva ou em uma rua qualquer.
Ele pensava... Quando ela apareceu. Sentou-se em frente a sua cadeira. Ele aparentava maturidade; ela jovialidade. Uma pele branca: branca como a neve. Falou dos filhos. Encontravam-se em uma Clínica Médica. Silvio aguardava o exame de próstata, completara 50 anos. Apesar de a aparente segurança no sentar, andar e falar, ela percebia sua ansiedade, o temor em seus olhos. A sensibilidade feminina aflorava naquele instante. Percebia a insegurança do homem à sua frente. Isso a seduzia. O olhar carente que ele demonstrava a seduzia. Um olhar, que apesar de inseguro, a desnudava. Além do olhar, o cheiro. Diferente de um perfume. Um cheiro que não experimentara antes. Algo a atraía. Um cheiro que despertava o desejo. Uma paixão. Logo foi chamado. Ela observava seu caminhar. À porta do consultório, antes de entrar, sorriu. Ela ouviu: Srª Márcia, sua vez. A Drª à espera. Buscava o creme para uma pele macia, protegeria a pela branca como a neve.
Momentos depois voltaram a se encontrar. Na farmácia buscava a medicação prescrita para a próstata. Ela, o creme protetor solar. Os olhares foram rápidos. Segundos eternizados. Estavam vulneráveis. Deixavam-se seduzir. A sedução é própria dos animais. Foi seduzida, sem uma palavra. Cheiro e olhar: dois sentidos animalescos. Algo que o homem traz das cavernas, do seu tempo de caçador. Ela se deixava seduzir. Gostava de pensar na ideia de ser amada e desejada da maneira que ele a olhava. Apesar dos sentidos aparentemente rudes, ela via leveza no olhar. Via a sutileza humana: via o amor puro. Ele perguntava o número: ela parecia não ouvir. O seu número do celular, ele disse. Caso eu precise de ajuda, ligarei. Após instantes de hesitação, ela ditou. Não foi preciso anotar, gravou em memória. Gravou, também, a silhueta de um corpo perfeito.
O telefone tocava, insistia... Uma, duas, muitas vezes. A filha encontrava-se em seus braços e o filho cobrava instruções para o dever de casa escolar. O telefone foi deixado de lado. Ainda tocou algumas vezes. O amor perfeito ficaria em sua mente. Nunca o esqueceria. Permaneceria nos sonhos e nos seus instantes de silêncio. Era tarde para tentar vivê-lo.




Sergio Damião Santana Moraes