De
João Cabral de Melo Neto, em A educação pela pedra, Habitar o tempo:
“[...] Portanto: para não matá-lo, matá-lo;/ matar o tempo, enchendo-o
de coisas;/ em vez do deserto, ir viver nas ruas/ onde o enchem e o
matam as pessoas;/ pois como o tempo ocorre transparente/ e só ganha
corpo e cor com seu miolo/ (o que não passou do que lhe passou),/ para
habitá-lo: só no passado, morto.”
domingo, 30 de outubro de 2016
Tabuada
“2 x 2 são
quatro.” Não podemos negar e muito menos esquecer. É um fato. Algo objetivo e
esperado. Está escrito na matemática. Um grupo de ciências (aritmética,
geometria, álgebra, trigonometria, cálculos, etc.) que estuda por meio do
raciocínio dedutivo as propriedades dos seres abstratos (números, figuras
geométricas, funções, espaços, etc.) e as relações estabelecidas entre si. Seu
uso nos leva a exatidão rigorosa. Portanto 2 x 2 são quatro. Nem sempre o
desejado. Podemos criar expectativas, ilusão em certos momentos da vida, mas na
realidade o resultado sempre será o quatro. Para ser diferente, só com magia,
em um mundo virtual, um outro mundo. O mundo da fantasia, algo da nossa
imaginação. Quando criança, por diversas vezes, viajei por este mundo, hoje não
é mais possível.
Bem... Você
pode até querer o número diferente do quatro, a ilusão será temporária, bem
pouco tempo, um tempo inexorável, tão certo como a finitude humana. Logo será
cobrado pela operação aritmética equivocada e fantasiosa. Pode argumentar:
deixo um espaço vazio, posso refazer a qualquer tempo a operação. Acrescentar:
na vida temos as coisas subjetivas. Coisas que não explicamos. Aparecem no
tempo. É verdade. Ainda assim, um caminho perigoso. Os números não mentem.
Deixam marcas. Também é verdade que o tempo não tem a precisão matemática. Menos
ainda a exatidão. O tempo faz e refaz. Ele pode somar e multiplicar, diminuir e
dividir em momentos diversos de nossas vidas. Mas ele faz e refaz ao seu bem
querer. Temos que ter paciência. Porém, temos pressa. Quando criança, minha mãe
tomava a tabuada. Enquanto cozinhava, perguntava: 7 x 7. Eu dizia: 49. E, 7 x
8. Eu demorava a responder, engasgava, e ela ajudava: cinquenta... Eu
completava: seis. Enquanto ela mexia a panela de arroz, ou de feijão, mostrava
um sorriso de satisfação e dizia: parabéns pela resposta certa. Quando
perguntava 2 x 2, eu gritava, esta eu sei. Não precisa ajudar. São quatro. Ela
completava: não se esqueça nunca. Para toda a sua vida. Em todos os momentos.
Viva a conta certa e não se arrependerá. Hoje, ela não pode lembrar a tabuada.
Perdeu a memória. Lembro por ela. Em certo sentido, a tabuada, lembrava uma
cantilena. Para alguns colegas era uma lenga-lenga, um nhem – nhem – nhem. Na
cozinha da nossa casa, junto às panelas de arroz e feijão, nunca pensei assim. Tempos
depois, nem sempre o 2 x 2 se apresentava com um resultado claro e evidente.
Resultados diferentes apareceram. Lembrava da tabuada e rapidamente refazia a
operação aritmética. E a vida voltava ao fluxo esperado e desejado. Vivemos
buscando o número diferente, muitas vezes o infinito. As máquinas atuais
permitem isso. Tornaram-se perigosas. Prefiro a tabuada da minha mãe. Simples.
Sem erro. Não mente. É o que é.
Sergio Damião Santana
Moraes
segunda-feira, 17 de outubro de 2016
Um pouco de poesia...
Do
líder espiritual tibetano Dalai Lama: “Os homens perdem a saúde para
juntar dinheiro, depois perdem o dinheiro para recuperar a saúde. E
vivem como se nunca fossem morrer... e morrem como se nunca tivessem
vivido.”
Dia do Médico
Dia 18 de outubro. A saúde é um completo bem estar
físico, mental e social. Um direito do cidadão e um dever do Estado. É o que
está escrito em nossa Constituição, desde 1988. Os transtornos da afetividade/depressões
se acentuam. Separar as doenças físicas das psíquicas não é tarefa fácil. Por
isso, o exercício da medicina é uma arte. A arte de ouvir, de auscultar, de
palpar e agir. Uma profissão mais que milenar. Mística. Desde os tempos
remotos. A sabedoria da mitologia grega já nos mostrava o caminho (Asclépio –
Deus da medicina, e suas filhas: Higéia - Deusa da medicina preventiva e
Panacéia - Deusa para a cura de todas as doenças e males), sabiam claramente
que, assim como um pai não pode privilegiar um dos seus filhos, a medicina não
deve esquecer a prevenção em favor da cura - a harmonia deve prevalecer. A
cristianização acrescentou a caridade. A arte da medicina iniciou-se nas mãos
dos cirurgiões e suas habilidades, suas improvisações e suas técnicas
cirúrgicas. Associou-se ao poder da observação clínica, muitas vezes simples, como
o ato de lavar as mãos e com isso a diminuição das mortes das mulheres no após parto
com a diminuição da infecção puerperal. E, evoluiu nos atos anestésicos do fim
do século XIX, permitindo as cirurgias modernas. Em 12 de outubro de 1916
nascia Edson Rebello Moreira, pediatra cachoeirense, fundador do Centro de
Estudos da Santa Casa de Cachoeiro. Ele tinha a compreensão exata do ser
médico.
Com a evolução da
medicina, sua alta tecnologia, não é mais possível recuperar a imagem retratada
em quadros: um leito domiciliar, um moribundo e ao seu lado um médico. A morte
não é mais permitida nas residências, nos transferimos para os leitos das
Unidades de Terapia Intensiva com os aparelhos de respiração e monitores. Aceitarmos
a finitude humana, a morte é inevitável, é uma oportunidade de vivermos em paz.
Ainda assim, é possível a profissão médica ser exercida baseada na relação
humana dos sentimentos. Por mais que pareçamos frios, nos alegramos com o sorriso
de uma criança ou adulto recuperado. Mesmo quando cansados de plantões e dias
acumulados de trabalho. O aforismo hipocrático deve nos acompanhar: “Curar
quando possível; aliviar quando necessário e consolar sempre.”
Sergio Damião Santana
Moraes
domingo, 16 de outubro de 2016
Um pouco de poesia...
De
Manuel Bandeira, em Libertinagem – Estrela da Manhã, “Trucidaram o
Rio”: “Prendei o rio/ Maltratai o rio/ Trucidai o rio/ A água não morre/
A água que é feita/ De gotas inermes/ Que um dia serão/ Maiores que o
rio/ Grandes como o oceano/ Fortes como os gelos/ Os gelos polares/ Que
tudo arrebentam.”
Tarde Chuvosa
Desci o morro do Gilberto Machado
em direção à beira do rio, final de semana diferente em Cachoeiro de Itapemirim,
o sol se ausentava do nosso céu desde o início da tarde, nuvens escuras tomaram
seu lugar, o horizonte, sem o sol, encontrava-se negro. Tão logo alcancei a
Ponte de Ferro, no centro da cidade, uma chuva fina se apresenta. Pensei em
retornar ao apartamento... Após breve hesitação, resolvi prosseguir. Mantive o
passo junto ao leito do rio. Ele, o rio, nos leva a isso, seguir em frente, é o
seu destino, sua sina. Segui em direção contrária, segui em direção à Ilha da
Luz; ele, em direção ao mar. Após alguns metros, as gotas das águas que desciam
das nuvens intensificaram-se, encharcando meu corpo, turvavam minha visão como
lágrimas em momentos de êxtases. Apesar da intempérie, fixei meus olhos nas
coisas do rio, seu leito e margens. Na calçada da beira do Itapemirim
apresentavam-se poucos transeuntes. A chuva afastava as pessoas. Eu, ao longe,
tinha como companhia a garça e o mergulhão. Destacavam-se, no centro do rio, as
penas esbranquiçadas da garça, contrastavam com o negro do mergulhão e o verde
das águas. Apesar da determinação nos passos, não era o que esperava para o fim
de tarde do sábado, procurara o lazer, encontrei o frio. No corpo, as roupas
molhadas; na mente, as dúvidas; perguntas diversas de uma vida toda - passado e
presente. Buscava respostas nas águas da chuva que se encontrava com as do rio
modificado. Permaneci como antes. Caminhei com a chuva, não sabia dizer sobre o
momento diferente (ora aproveitava as gotas das águas; ora pensava em fugir). A
chuva, diferente do sol, nos faz sair da inércia quando incomoda de imediato,
muda temperatura do corpo e altera emoções. Mas: era aquela chuva; outras
chuvas, em um lugar distante de Cachoeiro, não tiveram o mesmo efeito.
Cachoeiro me leva a pensar. Talvez, pela presença das coisas conhecidas à minha
volta ou pela intimidade com as águas do seu rio. Enquanto pensava, a chuva
acariciava minha face, preenchia o leito do rio e gradativamente emoldurava o
Itapemirim.
No domingo, bem cedo, o frescor do sol, sua
claridade e luminosidade, se apresentaram no céu de Cachoeiro. O rio mais
encachoeirado, límpido, com ruídos fortes e sons inebriantes, festejava os seus
pescadores. Ele exibia a brancura das garças e os mergulhões garantiam a pureza
das suas águas. Voltei aos passos pela calçada, carregava as dúvidas do dia
anterior. No domingo, não pensei, apenas apreciei o nosso rio e deixei as respostas
para uma próxima chuva.
Sergio Damião Santana
Moraes
domingo, 9 de outubro de 2016
Um pouco de poesia...
De
Pablo Neruda, em Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, Isto é
simples: “Muda é a força (me dizem as árvores) e a profundidade (me
dizem as raízes) e a pureza (me diz a farinha de trigo). Nenhuma árvore
me disse: ‘Sou mais alta que todos.’ Nenhuma raiz me disse: ‘eu venho de
mais fundo.’ E nunca o pão disse: “ Não há nada como o pão.”
Outubro rosa/Novembro azul
Tratamos mal
nossas crianças e mulheres. A sociedade, mesmo com toda evolução tecnológica,
ainda assim, não cuida. As agressões são diárias, e a todo instante, no Brasil
e mundo afora, mais ainda na África e na Ásia. Por isso, considero significante
a escolha da paquistanesa (Malala) e do indiano (Satyarthi) para o Prêmio Nobel
da Paz de anos atrás. Ela ousou ao denunciar o sistema e pedir escola para
todas as meninas do seu país; ele dedicou mais da metade dos seus 60 anos na luta
pela libertação de crianças de trabalho escravo. Em Cachoeiro e em cada município
brasileiro a preocupação deve ser diária, pois as agressões físicas e
psicológicas às nossas mulheres são enormes e a ignorância masculina para com
elas e para com seu próprio corpo é crescente. Medidas simples como exercício
diário, alimentação balanceada e não fumar são negligenciadas. Esperamos sempre
pelo novo remédio. Pelo milagre da cirurgia... No Brasil, na América e nos
países europeus, há vários anos o outubro veste-se de rosa. Uma cor
significativa em beleza. O Câncer de Mama é destacado - sua prevenção e
tratamento precoce em busca da cura. Porém, desejamos muito mais que a procura
do nódulo. As mulheres necessitam da liberdade, da perda de preconceitos, da conquista
da autoestima, da prevenção de outras doenças, a defesa contra violências... A
mulher, neste mês, e em todos os meses, deve se olhar, tocar e sentir o próprio
corpo, valorizar não só a estética, a beleza externa e aparente, mas também a
harmonia do corpo e alma. No novembro azul, a cor forte da prevenção e
detecção, também precoce, do Câncer de Próstata. Uma glândula pequena, própria
do homem, onde armazenamos espermatozóides e partilhamos vidas.
Mas, se
valorizamos o rosa do outubro e o azul do novembro, não podemos esquecer o
restante dos dias do ano. Algo próprio do brasileiro: emoção. Somos emotivos;
esquecemos da solidariedade. Ficamos na superficialidade das coisas. O que nos
falta para despertar enquanto Cidade, Estado, País e mundo civilizado? Acho que
devemos fugir da superficialidade. Aprofundarmo-nos nas causas, nos envolvermos
nos problemas sociais e públicos. Pintamos o corpo de rosa, vestimos azul,
colocamos faixas em sacadas de prédios públicos e privados, iluminamos o Cristo
Redentor e... tapamos os olhos para o restante das mazelas para com as mulheres.
Valorizamos exames radiológicos de última geração para detecção de nódulos em
mamas e esquecemos rapidamente as mulheres mortas em clinicas de abortos
clandestinos; esquecemos que mulheres são espancadas em suas residências. Necessitamos,
sim, do outubro rosa e do novembro azul: homens e mulheres sem diferenças, se
prevenindo de doenças. Não podemos esquecer que nos meses seguintes as mulheres
morrerão por causas que não queremos ver, pensar ou discutir. Precisamos
conversar sobre os outros meses do ano não tão coloridos.
Sergio
Damião Santana Moraes
domingo, 2 de outubro de 2016
Um pouco de poesia...
Do
poeta moçambicano, Mia Couto, em poemas escolhidos, Saudade: “Magoa-me a
saudade/ do sobressalto dos corpos/ ferindo-se de ternura/ dói-me a
distante lembrança/ do teu vestido/ caindo aos nossos pés...”
Saudade
Saudade dói. A
dor não é física. Não tem ponto de localização no corpo. Ela se apodera do pensamento,
da mente, das lembranças... Invade a visão do presente e parece que se
perpetuará no futuro. A angústia é imensa. O medo também. Medo de sofrer. A
saudade dói. Chega devagar e de repente se agiganta e ocupa todos os momentos
da vida. Mesmo dos instantes do cotidiano. Buscamos o tempo. O tempo é o
remédio. Um paliativo. Não existe cura para a saudade. Deixamos o tempo agir.
Ele abranda a dor. Alivia a angústia. Cicatriza feridas. Ele age lentamente.
Não é um tempo instantâneo. Para algumas saudades, o tempo parece tomar a forma
infinita. O tempo, apesar de cicatrizar feridas, ele deixa a memória, e da
memória as lembranças, e o lembrar traz a dor. Incomoda o viver. Viver passa a
ser dependente do esquecimento. Esquecer, apagar uma memória, não depende da
razão, depende dos nossos sentidos, e este, não dominamos totalmente. Depende
do desejo, e o desejo é mais forte que o querer racional. Tenho saudades. Às
vezes me pego triste, melancólico. São saudades... São muitas as fontes da
saudade. Ela é parente do amor. Só sentimos saudades daquilo que amamos, do que
desejamos. A saudade vem dos sentidos. Sentimos saudades do cheiro, do tocar,
do ouvir, da voz, do gosto, do perfume... Das coisas que nos alegram e nos faz
viver. A defesa para não sentir saudades, para não sofrer, é não amar; não
desejar. Mas como não amar? Seria um não viver. Portanto, viver é sofrer. Viver
é ter saudades. E ter saudades é sofrer. Somos fadados a sofrer. Os que amam,
sofrem. Sofrem os pais, os filhos, os enamorados... A saudade aparece em um
ponto de ônibus, em uma estação de trem, em uma rodoviária, em um aeroporto, em
uma avenida, em uma rua, estacionamento... Ela se manifesta no olhar, na mão
levantada do adeus, nas lágrimas da face ou na voz arrastada. Sofrem os que
ficam no fim de uma cerimônia de sepultamento; no fim de um relacionamento; na
viagem de um parente próximo. A saudade não esclarece a razão. Ela apenas se
manifesta. O tempo e a não lembrança são os remédios.
Na primeira
vez que presenciei uma dor fantasma, não entendi. Não entendia como uma dor
podia se manifestar em um membro que não mais existia. Hoje, entendo. É a saudade.
É a mesma saudade daquilo que não possuímos mais. Na dor fantasma, eu não entendia
como ele podia se queixar, dias após a amputação, de dor mais forte do que
quando o membro gangrenado estava unido ao restante do corpo. O cérebro, na dor
fantasma, lembrava da parte do corpo retirada. Sentia saudade de parte do
corpo. A dor não pertencia à razão, não era consciente, era sentida pelas
lembranças de seus neurônios. O cérebro sentia saudade daquilo que um dia lhe
pertencera. Assim nos apresentamos nas perdas. A saudade dói, incomoda como se
parte de nós não mais existisse. É preciso reconstruir a parte perdida. Existem
pedaços em nossa volta que podemos juntar e assim abrandar a saudade.
Sergio Damião Santana Moraes
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