O relógio
batia. Um pequeno relógio despertador encontrava-se junto aos meus ouvidos, na
cabeceira da cama. Amanhecia, domingo de verão, dia depois de completar
sessenta anos de idade. Entrava na sétima década de vida. O meu primeiro dia de
uma nova década, meu primeiro dia como idoso pelas leis do meu país. Com o
corpo estendido no colchão da cama, despertava. Ainda sonolento, permaneci com
os olhos fechados. No apartamento, próximo ao mar, reinava o silêncio, ouvia:
tic-tac, tic-tac, tic-tac; ao fundo, bem distante, o despejar das ondas do mar
nas areias da praia (chuá). Algo inebriante. Domingo: nunca soube, permaneço na
ignorância, se estou iniciando ou terminando a semana, não importa. O domingo
foi feito para o descanso. Acho que, o criador do tic-tac, e das ondas do mar,
decretou o descanso desde o início dos tempos. Bem antes dos calendários e dos
homens decidirem pela contagem dos dias, horas, segundos... Bem antes dos
homens contarem seu tempo de vida, bem antes de tudo. No domingo, minha mãe, em
um dos seus rituais, cerimoniosamente, preparava nossa refeição: frango ao
molho pardo com batata inglesa, arroz, feijão e macarronada. Acordava cedo,
acordava com ela, com habilidade e respeito, após ferver a água, disponibilizar
um prato com vinagre como recipiente para o sangue, depenava o frango. Eu
ajudava na coleta do sangue, na retirada das penas e na separação das partes a
serem consumidas. O restante ela fazia com maestria, ano após ano. Enquanto
lembrava as coisas da minha mãe, esqueci-me dos sons. Logo, eles retornaram.
Instigantes.
Ainda com os
olhos fechados, na alternância do despertar e sonolência, o tic-tac anunciava
um tempo passado. A cada batida, meu tempo de vida escorria; avançava a contagem
do meu tempo de vida. Vivemos em contagem regressiva. Desde o nascimento, nossa
primeira perda. Perdemos segurança do útero e placenta do ventre de nossas
mães. Passamos a conviver com outras perdas da infância, adolescência e fase
adulta. Entre perdas e ganhos; entre encontros e desencontros, alcançamos o
equilíbrio e a maturidade do saber que a vida é feita de perdas. Morremos e
nascemos nas perdas. A maturidade advém da superação das dores de coisas
perdidas. Perdemos entes queridos, oportunidades de relacionamentos e trabalho,
perdemos amores... Fazemos nossas escolhas. Silenciosamente o barulho do
despejar das águas das ondas do mar nas areias da Praia de Itapoã, em Vila
Velha, abafou o tic-tac. Quando criança, após acesso de tosse, comum para a
idade, minha mãe, para minha tranquilidade, colocava os ouvidos em meu peito em
busca de algum “chiado”. Dizia: ouvi seu relógio, ouvi seu coração, ouvi
tic-tac. Quando cresci, como médico, ao auscultar outros corações, ouvi: tum-tá,
tum-tá, tum-tá. Senti saudades do tic-tac que ela dizia ouvir.
No silêncio do
apartamento, recusava abrir os olhos. Não queria voltar à realidade, pisar no
chão. No primeiro dia da minha sétima década, senti medo. Deixava alternar os
sons. Neles permaneciam os sonhos. Apesar de não ouvir as batidas do meu coração,
podia sentir sua regularidade. Com as lembranças, sentia suas batidas aumentarem
em frequência. Em seguida, o despertador tocou. O tic-tac deu lugar a um som
alto e forte. Despertei para a vida. Levantei e iniciei meu retorno para Cachoeiro
de Itapemirim.
Sergio Damião Santana
Moraes
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