No primeiro
dia de 2015 o sol encontrava-se intenso no céu de poucas nuvens. O rio
Itapemirim, em sua forma habitual, corria serelepe pelo centro da cidade,
separando ruas e avenidas, moldando, junto com o Itabira, o vale cachoeirense. Observando
melhor, o rio encontrava-se, naquele dia, levemente diferente. Suas águas
corriam entre as pedras em um volume menor; em sua correnteza fraca, o som se
ouvia em menor intensidade, resultado da falta de chuvas vespertinas. Em uma
das margens do nosso rio, uma garça. Não aparentava fraqueza. Pelo contrário.
Sobre uma pequena pedra demonstrava equilíbrio e certa altivez. Com seu bico elevado:
imponência - apesar de certa fragilidade ao primeiro olhar, ou melhor, no olhar
das lembranças. Sobre as garças, Manoel de Barros, poeta do Pantanal, escreveu:
“Penso que têm nostalgia de mar estas garças pantaneiras. Há uma sombra de dor
em seus voos. Assim, quando vão de regresso aos seus ninhos, enchem de
entardecer os campos e os homens./ Sobre a dor dessa ave há uma outra versão,
que eu sei. É a de não ser ela uma ave
canora. Pois que só grasna – como quem rasga uma palavra./ De cantos portanto
não é que se faz a beleza desses pássaros. Mas de cores e movimentos. Lembram
Modigliani. Produzem no céu iluminuras. E propõem esculturas no ar. / A
Elegância e o Branco devem muito às garças./ Chegam de onde a beleza
nasceu?/... (Acho que estou querendo ver coisas demais nestas garças.
Insinuando contrastes – ou conciliações? – entre o puro e o impuro etc. etc. Não
estarei impregnando de peste humana esses passarinhos? Que Deus os livre!)”
É... Estava
diferente. Não era assim que a via em meus dias de caminhadas ao longo do rio.
A garça da minha memória trançava alegremente o leito do rio. O voo e a cor
branca de sua plumagem, era o que lembrava. Por isso, a demora em reconhecê-la
sobre a pequena pedra à minha frente. Eu caminhava em sua direção. Mais me
aproximava e menos a reconhecia. Recusava a imagem. Assim como recusamos o
novo, o diferente. Mais me aproximava, mais me parecia estranha. Não na forma
(a cor branca, o bico fino, pescoço comprido, pernas longas...), mas na
postura, no comportamento, na maneira que me olhava. Agia diferente de todas as
outras que continuavam a sobrevoar o rio Itapemirim - o voo da garça que
aprendera a gostar e admirar. A garça que avistava sobre a pedra não me trazia
alegria. Ela parecia me questionar, me fazia pensar, me incomodava. Incomodava
como incomoda aqueles que nos questionam, os que querem respostas para coisas
que fazemos, maneiras que agimos ou escolhas que realizamos.
De repente,
sem uma razão aparente, sem um ruído mais intenso que a fizesse mudar de comportamento,
ela levantou as asas e alguns segundos depois alcançava altura e juntou-se às
outras aves. Uma escolha. Mostrava-se livre para as próprias decisões. Bem mais
livre que eu. Não parecia preocupada com a escolha. Voava simplesmente.
Observei seu voo e fiquei como no primeiro instante em que a vi: sem saber a
razão. Lembrei-me do seu olhar para o entorno do rio - seu leito sujo, águas e
peixes diminuindo... Seria essa a razão? Mas... E o restante do olhar?
Janeiro, 2015.
É até a garça questiona a humanidade que insiste em assorear os rios. Não é para menos sua infinita tristeza.
ResponderExcluirÉ até a garça questiona a humanidade que insiste em assorear os rios. Não é para menos sua infinita tristeza.
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