Deuteronômio
5-19. Um mandamento bíblico. Estava escrito na parte interna da caneta Bic. No
fim da citação constava o nome da proprietária. Naquele instante, como um
flash, um resgate instantâneo da memória, de pronto lembrei que pegara
emprestado e não devolvido. Infelizmente um hábito de anos de hospital:
esquecer de devolver a caneta alheia. A devolução acontecia quando o empréstimo
se fazia sem a tampa. No restante das vezes guardava em bolso de camisa com um
movimento quase que automático – algo que atribuía à necessidade de atendimento
de muitos pacientes. Até então muitas justificativas para o acúmulo de canetas
em meu carro. Pela primeira vez a consciência pesou. Uma pequena frase me tocara.
Despertar um sentimento de culpa. No momento da leitura estava em frente a um
paciente, escrevia uma receita médica e orientava sobre hábitos saudáveis – principalmente, controle do peso. Devia evitar
os pequenos furtos noturnos em geladeiras. Quando me dei conta, falava dos pequenos
furtos, como se eu também, não os cometesse. Pensei em outro ensinamento
bíblico: “Não tenham na bolsa dois padrões para o mesmo peso, um maior e outro
menor. Tenham pesos e medidas exatos e honestos...”. Após a saída do paciente,
com o consultório vazio, pensei nas muitas justificativas para os pequenos
erros. Resolvi devolver aquilo que não me pertencia. Enquanto dirigia, lembrei
a história de David e Betsabá, o profeta Natã alertando David sobre os erros. Erros
com o soldado Urias, com os vizinhos... Os erros que David não queria enxergar.
O pensador brasileiro, Eduardo Gianetti, diz: “Ninguém é bom juiz em causa
própria. A capacidade humana de julgar com isenção tende a declinar, na medida
em que nos aproximamos de tudo aquilo que nos afeta e interessa de perto.”
Poderia ser assim: “Se Deus segurasse em sua mão direita toda a verdade e em
sua esquerda a perene busca pela verdade, e dissesse: Escolha! Humildemente
escolheria a mão esquerda e diria: Daí-me senhor! A verdade pura é para vós
somente!”. Talvez, por isso, pela fragilidade humana, para o convívio social,
necessitamos da tolerância zero, uma maneira de agir, que toma conta de algumas
cidades mundo afora. Isto é, todo delito, por menor que seja, deve ser punido
ou avaliado. Voltar aos pesos e medidas exatos e honestos.
Por fim, me
encaminhei ao hospital, devolveria ao dono aquilo que não me pertencia. Algo
simbólico. Um valor material mínimo, mas de grande valor comportamental. Antes,
porém, na Rua Moreira, necessitei de cuidados dentários. Na cadeira do
dentista, enquanto aguardava o procedimento, observei pela janela, na sacada do
consultório, um beija-flor, ele roubava a seiva da orquídea. Pensei em condenar
o roubo, mas a beleza das cores do colibri, seu malabarismo junto à flor, o momento
da natureza me fez esquecer a caneta e o meu próprio delito. Retornei ao
trabalho e deixei a entrega para outro dia.
Maio, 2016
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