Silvio pensava
em Márcia e lia os textos de autoras literárias femininas. Lia romances,
contos, crônicas e poesias de mulheres escritoras do mundo afora. Descobria um
mundo literário diferente. Início de março, bem próximo ao Dia Internacional da
Mulher. O verão em seus últimos dias, porém de calor intenso e chuvas fortes em
fim de tardes. O rio apresentava-se belo, com seu leito preenchido, admirado do
alto das pontes que o cruzavam. Estavam em mãos as Vozes do Deserto, livro da Nélida
Piñon, primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras (ABL) e Bom
dia, tristeza, da escritora francesa Françoise Sagan. Em certa parte do livro,
estava escrito sobre o amor: “É outra coisa, é uma saudade.” É bem mais que um
beijo, uma carícia... Ele sentia saudades. Algum dia havia sentido saudade de
alguém? Da Márcia sentia. Então era amor? Fim de tarde, chovia. A noite se
aproximava. Como um Califa, procuraria se assentar em sua sala, na parte mais
confortável do seu apartamento, com os livros em mãos, se entreteria com as
histórias da Scherezade. Procuraria não se lembrar de suas saudades.
Aventurar-se-ia com Aladim, Alibaba e Simbad. Visitaria as areias do deserto de
sua infância, o mundo que criou em suas primeiras leituras. Faria viagens
imaginárias, visitaria um mundo de fantasias que havia esquecido. Naquela
noite, como um Califa, reveria suas primeiras histórias infantis.
Ainda que a
leitura o agradasse, ainda assim não conseguia concentrar-se. Naquela noite, os
dois livros o incomodavam, não conseguia relaxar o suficiente. Lentamente, as
palavras escritas aliviavam sua mente. Silenciosamente ele chorava com as
lembranças que as vozes de Scherezade, a princesa que se dispôs ao sacrifício
de permanecer aprisionada ao Califa para salvar a vida de outras mulheres,
despertava. Encantava a imaginação inocente e suas fantasias. O imaginário de Scherezade,
mesmo com toda opressão masculina, afastava a maldade da mente do monarca. Scherezade
cumpria uma missão: dominar a mente do homem durante a noite, supostamente de
amor, para evitar o extermínio, ao alvorecer, das mulheres do reino. Para isso
usava a sedução, a criatividade, as fantasias das palavras. Transformava a vida
amarga e vingativa do homem com seus contos das Mil e uma Noites, os mais belos
contos árabes. Scherezade aludia à esperança.
De Sagan,
Silvio estranhava a tristeza. Assim como estranharam os franceses de sessenta
anos atrás. Uma desconhecida, Françoise, descrevia a alma de uma adolescente. Na
voz de uma narradora na primeira pessoa, descrevia conflitos familiares. Desde a
relação insegura com um pai imaturo, de amores alternantes e descompromissados,
até seus desejos ocultos. Descreveu a banalidade das relações humanas nos
nuances de uma personalidade feminina em formação. Ele se entristecia. Pensava
no querer e não querer da Márcia, via nos relatos das personagens femininas de
Nélida e Françoise, nas entrelinhas das suas histórias, a razão oscilante do
comportamento amoroso da sua amada. Assim como o Califa, no deserto árabe,
adormeceu com a voz de Scherezade. Adormeceu após horas de leitura. Acordou com
uma lágrima em face. Página aberta, descrição da morte de Anne. Com o livro
aberto, o título assustava: Bom dia, tristeza.
Sergio Damião Santana Moraes
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